sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

A minha velhota




Confesso que nos primeiros encontros me tirava do sério aquela velhota ao balcão do supermercado onde muitas vezes encomendo o almoço. Aliás, comecei por achar estranha a coincidência, mas sobretudo a frequência dos momentos em que ombreávamos, de senha na mão, aguardando o atendimento da empregada. Fosse qual fosse a hora ao fim da manhã, lá estava a velhota a moer a paciência da funcionária que, com cara de pau, ia recitando os preços do quilo do fiambre que ela rejeitava, do salsichão que encomendava e de imediato devolvia por ter muito colorau, ou da perna de frango que, já depois de aviada, trocava pela empada de galinha. Neste ritual, repetido dia após dia, senti que passei de espectador a participante daqueles momentos, apesar de nunca termos trocado uma só palavra. Pareceu-me que, quando eu chegava, a velhota aprimorava o método de fazer crescer a fila atrás dela, fila de gente apressada que como eu se agitava de inquietação. A minha irritação foi paulatinamente dando lugar à tolerância, e confesso que dei por mim a pensar que naquele ambiente que me é muito familiar, havia algo de estranho nos dias em que não me cruzava com ela.
Ontem, não pude deixar de começar a alargar o sorriso quando a senhora, nos seus modos habituais, pediu cinco fatias de queijo empilhado no balcão frigorífico:
- Quer do do Pingo Doce ou deste, de marca? - pergunta-lhe a empregada.
- Qual o que tem mais sal? - devolve a velhota.
- Mais sal? Não sei. Não, sei! O que tem mais sal é o de marca. - atalhou a empregada apercebendo-se do que vinha aí.
- Então levo do outro...
Seguiu-se a operação da contagem das fatias - "Olhe que só quero mesmo cinco!" -, a pesagem, o embrulho, a colagem da etiqueta com o preço, o coro de suspiros de alívio daqueles, e muitos eram,  que se iam acumulando de senha na mão.
Recolhido o pacote no saco que sempre lhe vi pendurado no pulso, eis que, sem surpresa para mim, a senhora grita para a empregada antes que esta tivesse oportunidade de fazer avançar o contador:
- Espere lá, ó menina. Este queijo não é daquele, do mais gordo? É que ontem disse-me que este queijo era do gordo e eu não posso comer gorduras.
- Não é muito mais gordo que o outro, minha senhora - diz a empregada com cara de que tanto bastaria para a por a andar.
- Mas é mais gordo. E sabe, nesta idade a gente tem de se proteger. Olhe, afinal antes prefiro do que levei ontem!
Não me espantou o bruá que se sentiu, o encolher coletivo de ombros, um ou outro comentário pouco simpático para a geral da terceira idade. O que me surpreendeu foi o largo sorriso maroto que a velhinha me dirigiu, seguido de um bem definido piscar de olho.
Não consegui disfarçar uma manifestação de divertimento por aquela cena. E dou comigo a perceber,  naquele instante, que estava a participar no lapso da vida diária daquela criatura, que gozava ali dos momentos de protagonismo em que pontapeava a solidão a que certamente dali a pouco regressaria. Imagino eu, que nunca a vi acompanhada de quem quer que fosse.
E desejei: que Deus lhe conserve, pelo menos, a marotice.
 

8 comentários:

  1. Já tomei apontamento do truque, caro Dr. José Mário!
    Na minha idade, convém começar a juntar um stock de marotices para, chegado o tempo em que todos me olharão como para coisa obsuleta, não ficar "enrascado" e conseguir "roubar-lhes um pouco do tempo que lhes falta e que mais tarde irão ter de sobra.
    ;) ;) ;)

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  2. O cliente tem sempre razão. :) Mas que um simples piscar d'olhos desarma qualquer é verdade. Bom post.

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  3. Um apontamento realista tão bem escrito e com tal ritmo que parece que estamos a ver o filme projectado ali à nossa frente? Parabéns, caro Ferreira de Almeida!

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  4. ...ali, à nossa frente!!!
    Com ! e não com ?

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  5. É para continuar!

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  6. Não consegui evitar uma forte risada.
    Muito bom e muito bem relatado.
    Esperamos mais.

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  7. José Mário
    Um pedaço de vida de muitas velhotas que enganam a solidão com "diabruras" que acabam por ter graça. Sorte a sua que foi premiado com um piscar de olho muito maroto! E ao qual não foi indiferente, a história ternurenta que aqui partilha connosco mostra isso mesmo...

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