quinta-feira, 5 de julho de 2018

"Géiseres da vida"...



Todos os dias morrem pessoas. Desconheço a maioria, ou, para ser mais rigoroso, a quase totalidade. Conheço um ou outro, por motivos diferentes. Convivi com alguns de forma direta e intensa. De qualquer forma, foram suficientemente marcantes para provocar efeitos na minha maneira de ser e de estar. Assim que tenho conhecimento do único denominador comum da humanidade, a morte, explode de imediato as lembranças. A explosão reduz-se a um, dois, ou, no máximo, três apontamentos. Marcas que são ao mesmo tempo uma forma de homenagear quem participou na minha formação.
Poderia citar inúmeros casos, verdadeiros géiseres da vida despertados pela morte. 

Era estudante quando o senhor deu uma aula a convite do professor da cadeira. Recordo muito bem, foi sobre a importância da genética na patologia humana. Sorria, comentava, gesticulava e lançava apartes que ajudaram a sedimentar os conhecimentos. Um pouco sui generis, diga-se de passagem. Nesse ano, após o café no bar da velha faculdade, comentou alguns acontecimentos que tinha vivido em França. No corredor, as aulas iam recomeçar, continuou a falar sobre a verticalidade do caráter do ser humano. Utilizou como exemplo um primeiro-ministro francês (por duas vezes), George Clemenceau. O seu sentido de honra levou-o a pedir que quando morresse fosse enterrado de "pé". "Um ser vertical em todos os sentidos", comentou. Ainda não tinha nascido o "Dia da Liberdade". Fiquei de boca aberta. Interiormente, pensei, faz sentido. Estes dois apontamentos surgiram ato contínuo logo que tive conhecimento do seu passamento.
Outro géiser foi despertado por um colega mais velho. Simples, meigo, nunca o vi irritado, respeitador, trabalhador, sem ambições de carreira, exceto fazer o trabalho bem feito com dedicação, ternura, profissionalismo e respeito pelo próximo. Um dia, ao sairmos do velho hospital, reparei que ia com um cigarro a bailar na mão, ao mesmo tempo que também dançava. Fiquei na dúvida se era ele que dançava com o cigarro ou se era este que marcava o ritmo. Uma dança cheia de alegria e de imenso prazer. Sorri. Mais tarde, já tinha abandonado a carreira hospitalar, telefonou-me para comunicar a morte de uma tia. Fomos, os dois, ao velório. Tinha esta característica, partilhar todos os momentos dos doentes, inclusive a própria morte. Médico do corpo e da alma. Aprendi muito com ele, sobretudo a humildade que é a melhor expressão de ascender na carreira da vida. O maldito cigarro que tanto apreciava, e eu também, levou-o à certa. Eu tinha parado nessa altura, mas ele não. Quando li a notícia do seu óbito veio à minha mente aquela dança cheia de prazer e de alegria, entre ele e o cigarro, e a forma como sempre encarou a vida dos doentes e a morte, com muito respeito.

2 comentários:

  1. Faz bem lê-lo, Professor.
    Cpmts.

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  2. Belíssimo, oiço tantas vezes que é uma perca de tempo ler "Blogues de Desconhecidos",que depois de ler este seu texto, penso que não, nem são desconhecidos, e pelo contrário só tenho a ganhar.
    Muito obrigado

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