Faz hoje dois anos que conheci o Rogério. Desde esta cena já passei muitas vezes pelo mesmo local. Passo e recordo o Rogério. Nunca mais o vi. Tenho receio de que já não exista. O melhor é não perguntar. Passo pelo mesmo local e recordo a história de um dia de calor. Sou filho de histórias e quero ser pai e avô de histórias. Sim, sem histórias não sou ninguém...
Aproveitei o dia livre para o encher de prazer e de emoção. Basta-me andar ao “deus-dará” para tropeçar com pequenos episódios, acontecimentos e fazer belas descobertas. Cada vez gosto mais de andar ao sabor do vento do tempo. Eu também me transformarei um dia nesse vento.
Depois de termos almoçado, bem, demos um pequeno passeio pela localidade. O sol estava no seu pique. Gente nem vê-la. O calor apertava e de que maneira. Procurávamos incessantemente a sombra quando, de repente, surgiu uma figura surpreendente. Um velho, mirrado pelos anos, com uma das mãos, a esquerda, a apertar simultaneamente a camisola e as calças (ou pijama), como a querer evitar que lhes caísse aos tornozelos, caminhava à pato e a pequenos e instáveis passos. – Valha-me Deus! De onde terá surgido aquela figura? Disse para a minha mulher. – Fugiu de algum sítio. Só pode. Pela forma como caminha, e atendendo à idade, aquela cabeça está toda baralhada. Vamos. Vamos perguntar-lhe o que é que ele anda a fazer. Avançámos meia dúzia de metros e interpelei-o. – Bom tarde, bom senhor. Boa tarde. À segunda saudação parou e olhou-me. – Como é que se chama? Tive de repetir mais duas vezes. Deu-me a sensação de que estaria a processar a resposta a uma pergunta que deve ter ouvido várias vezes ao longo da vida. – Rogério. Rogério. – Ó senhor Rogério, o que anda a fazer com este sol? – Bjjjj. Bjjj. Bjjj. Fugi de casa. – O quê? Fugiu de casa? Mas o senhor sabe o que fez? Com quem é que vive? Sem perceber, voltou a sorrir e a lançar os seu “bjjjjs”. – Mas sabe ir até à sua casa? – Sei. – Ai sabe? Onde é que mora? – Ali. – Ali onde? – Ali. E apontava o local. Disse para a minha mulher: - Isto vai ser complicado. Como a conheço bem, vi logo que se ia meter com o Rogério. Pôs-se a falar com ele e, claro, não tardou a vê-lo todo sorridente e a dançar. Levantou os braços, começou a agitar os dedos ao mesmo tempo que levantava o rabiosque acompanhado da tentativa de se elevar do chão. – Valha-me Deus. Ó senhor Rogério vá para casa por amor de Deus. – Está bem. Está bem. Avançou pela rua principal, velha de séculos e de história, até chegar junto de uma escadaria cujos degraus, monstruosos mesmo para um jovem, tentou galgar. À primeira tentativa ia malhando com os ossos no granito escaldante. A minha mulher correu e segurou-o. Depois, com muita dificuldade, ajudou-o a subir. Lá em cima, na rua medieva, começou a caminhar com os trejeitos de quem não sabe para onde ir. Passou em frente a uma casa, porta escancarada, junto da qual, num velho assento de granito, uma velha apanhava o ar da tarde à sombra. Vi que ela lhe disse alguma coisa, mas o Rogério continuou na sua marcha. Sempre na expectativa do que poderia acontecer, aproximei-me da velha e perguntei-lhe se sabia quem era aquele senhor. – Não. Não sei. – Não conhece o Rogério? – Não. - Não? Não é daqui? Sorriu e vi que não estava melhor da cabeça. Pus-me no seu encalço, até que o apanhei. Gritei-lhe: - Ó Rogério! Ó Rogério! À segunda interpelação parou. Olhou-me e com aquele ar de quem está aprisionado dentro de um cérebro esquecido ficou à espera de instruções. – Vamos para casa. Estão todos preocupados consigo. O pior é que eu não sabia onde morava, até que duas senhoras presenciaram a situação. Vi que o conheciam. Pedi-lhes ajuda. Sem ficarem muito surpreendidas, disseram-me que era comum andarem à sua procura. – Sabem onde é que ele mora? Quando me disseram onde era fiquei de boca aberta. Afinal, vivia na casa cuja porta estava escancarada e na qual, sentada no banco de granito, estava a mulher. – O quê? Aquela senhora é a mulher? – É sim senhor. Mas ela não sabia quem era o Rogério! – Sorriram. Estava tudo explicado. Enfiei o braço debaixo do braço direito dele, enquanto a mão esquerda apertava insistentemente as calças para que não caíssem. Levei-o até casa. Satisfeito com o episódio, começou a querer dançar. As senhoras que o conheciam bem disseram-me que em novo saltava no ar e batia com os pés um no outro a dançar. Não perdeu o jeito, faltou-lhe apenas a elevação. Entrou em casa. Depois, duas vizinhas vieram em seu auxílio e estivemos a conversar um bom bocado sobre o quadro. Sei que ambos tinham mais de noventa anos e...
Agradeceram a nossa ajuda.
O país está cada vez mais deserto, mais pobre e mais velho...
Grande história do país real, contada por um grande Professor!
ResponderEliminarSabe onde se localiza a história, caro amigo Pinho Cardão? Em São Pedro do Sul...
ResponderEliminarSenhor professor, adoro e admiro, tudo o que escreve pois eu também adoro histórias, vivo-as intensamente quando as presencio mas, infelizmente, não tenho habilidade suficiente para as descrever.
ResponderEliminarNesta belíssima história, só uma coisa não ficou para mim muito clara: então o Sr. Professor, apercebendo-se que naquela casa viviam dois velhos que, presumo, foram cônjuges e que, pela demência, já não se conheciam, não comunicou isso a quem de direito para que fossem tomadas as medidas necessárias?
Não me quadra muito bem.