Deixo o meu artigo publicado no jornal i de 26 de Junho de 2019
Por alturas do ano 406 a.C. teve lugar a
grande batalha naval das Arginusas, entre Atenas e Esparta, assim
chamada por se ter dado nas imediações daquelas ilhas, próximas da atual
Turquia, mais de 150 trirremes de cada um dos lados beligerantes.
Esparta equipou uma forte armada, recrutando centenas de mercenários
atenienses, com apoio financeiro dos persas.
A vitória inclinava-se para Esparta quando Calicrátides, o
seu comandante, morreu em combate. A notícia foi-se espalhando e os
espartanos, enfraquecidos pela falta de chefia, sofreram terrível
derrota. Apenas uma pequena parte conseguiu fugir, tentando abrigo na
sua base de Mitilene, na costa turca.
Também os atenienses tiveram pesadas baixas e, finda a batalha,
centenas de marinheiros flutuavam agarrados ao que restava das suas
trirremes.
Reuniram os oito comandantes atenienses liderados por Péricles o
Novo, general prestigiado e várias vezes o estratego de Atenas, filho do
grande Péricles, para decidir o próximo passo, se perseguir os
espartanos em fuga e consumar uma vitória absoluta, ou acudir a salvar
os náufragos e enterrar os mortos. Foi longo o debate, e dele saiu como
prioridade concentrar forças para perseguir os espartanos, tendo dois
capitães sido encarregados de recolher os feridos e sobreviventes com o
apoio de algumas trirremes. Levantou-se entretanto forte tempestade e
todas as embarcações tiveram de desistir e regressar a Atenas.
Os generais foram recebidos como heróis. Mas quando se foi sabendo
que não tinham cuidado dos vivos nem enterrado os mortos, levantou-se
grande clamor, exigindo que fossem julgados por tão ignominioso
procedimento.
Reunida a Assembleia dos Quinhentos, os generais invocaram os
superiores interesses da cidade para justificar a sua conduta e acusaram
os capitães de não terem recolhido os náufragos, enquanto os capitães
acusaram os generais pela demora das ordens de salvamento e uns e outros
se desculparam com a tempestade. No fim de um julgamento agitado, os
generais foram condenados à morte e logo executados.
Para a assembleia, assegurada que estava a vitória, a obrigação era
cuidar dos feridos, salvar os náufragos e homenagear os mortos, e nem
interesses relevantes da cidade na aniquilação do inimigo e numa vitória
mais dilatada, todavia sempre incerta, podiam sobrepor-se a esse dever
moral.
Lembrei-me da história quando os comandantes do nosso Governo, em
nome de um muito discutível objetivo de Estado de alcançar o menor
défice orçamental de sempre, não cuidam dos ainda vivos, feridos ou
doentes, que acorrem aos hospitais para tratamento. E, por ação direta
ou omissão, fazem escassear médicos e enfermeiros, técnicos de saúde e
auxiliares, e até medicamentos, ou provocam adiamentos de cirurgias por
falta de meios indispensáveis, ou obrigam os náufragos da saúde a
esperar dois, três ou quatro anos, ainda agarrados à vida, pelos
cuidados de que necessitam.
E também me lembrei da história quando, perante todo este panorama,
se perde tempo, sem senso nem conta, a discutir a saúde pública em vez
da saúde dos portugueses e a debater uma lei de bases que não se enxerga
que traga mais do que despudorada exibição ideológica, porque nenhum
dos seus mentores é capaz de dizer em que é que essa nova lei impede
cativações e melhora a situação atual.
E assim a ideologia e o défice zero, em nome de uma falaciosa defesa
do Estado, se sobrepõem ao dever primário de tratar dos vivos.
Salvaguardadas as distâncias, e passados 2400 anos, castigando a
vilania de não tratar dos feridos, Atenas ainda é uma lição. Ou seria,
se os atuais governantes, responsáveis pela crueza de falta de
assistência aos doentes, mas porventura respaldados, eles próprios, na
ADSE e noutros seguros privados, não escapassem a algum firme corretivo.
Salvando-se-lhes a cabeça, claro está!...
Belo texto! Exceto, talvez, a última frase, da qual sinto vontades de discordar!
ResponderEliminarObrigado, caro P. Helmich. Mas temos que ser magnânimos!...
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