quarta-feira, 26 de outubro de 2022

“Conserva o teu sorriso” …

Acabei a manhã de trabalho muito cedo. Apesar da agressividade bendita da chuva, que quer fecundar a terra, fui dar uma volta. Entrei na loja de antiguidades/velharias. A senhora deve ter-me reconhecido e apontou logo para a zona dos livros, que estava praticamente inacessível. Fez os possíveis para que eu pudesse tocar-lhes. Não foi nada fácil, mas mesmo assim consegui tocar nalguns e em poucos minutos já tinha coligido cinco. Uma mania como outra qualquer. Achei curioso a explicação. “Muitos destes livros foram dados pelos donos. Como já não tinham espaço, ofertaram-nos. Agora vendemos a um euro”. Pensei que deveriam ser tolos. Descartar livros é como sujar a alma de lama. Posso descartar-me de muitas coisas, menos de arte e de livros. Não disse nada, sorri apenas. Estive tentado a trazer muitos, mas os livros pesam. Neste caso pesam literalmente, mas na carteira não. 

Fui até ao restaurante habitual, muito tempo antes da hora. Sentei-me na esplanada. O dono surgiu. Vinha das compras. - Então, que é que traz aí? - Douradas e estas sardinhas. Mostrou-me. - Opto pelas sardinhas. - Quatro ou cinco? - O senhor é que sabe. Sorrimos em uníssono. Já sabia que ia demorar, obviamente. Entretanto, comecei a folhear os livros. Alguns eram virgens. Há décadas que estavam embrulhados em plástico. Nunca ninguém os tinha aberto. Três eram de autores portugueses, Aquilino, Camilo e Trindade Coelho. Um outro, era uma coletânea brasileira de pequenos contos, cujos autores foram omitidos. O quinto, um livro de Rex Stout, a propósito do famoso Nero Wolfe, detetive que me impressionou desde sempre, fechou o capítulo preliminar antes der “ler” as sardinhas assadas. Calcorreei os cinco. A minha vontade era navegar todos sem respirar. Claro que não vou conseguir. Não por não ter vontade, mas por falta de tempo. Todos foram fonte de inspiração e de saudade. Gosto de livros. São alimentos para uma alma que se sente cada vez mais pobre neste mundo estranho e sem sentido. Desaparecer no seu seio seria uma forma de renascer num mundo belo e sedutor.

Vivam as sardinhas, vivam os livros e, sobretudo, um bom vinho. 

A meu lado almoçavam cinco pessoas, quatro jovens e uma senhora que devia ser a “tutora”. Pela conversa depreendi que seriam estudantes de cinema. Estavam na localidade para um congresso. Dois deles tinham sotaque brasileiro. Falavam alto e não pude de deixar de acompanhar a conversa, desde os tipos de alimentos até aos cursos que frequentavam. Houve um momento em que falaram dos próximos feriados. O facto de a brasileira ter dito que o primeiro de dezembro tinha a ver com a queda da ditadura e a instauração da república obrigou-me instintivamente a entrar na conversa. Pedi licença e fiz as correções necessárias. Ouviram-me com atenção e agradeceram. O que estava mais próximo apontou para um dos livros que tinha em cima da mesa, deve ter-lhe chamado a atenção a encadernação antiga, e perguntou que livro era.  Disse-lhe que era uma coletânea de contos, editado há muitos anos no Brasil. Conversa, puxa conversa. Acabei por lhe oferecer o livro, aconselhando-o, sempre que comprasse um livro antigo a folheá-lo, porque por vezes encontramos coisas belas, como cartas, notas e outras coisas mais. Ficou de boca aberta. Mas para não ficar sozinho, também ofereci o “In illo tempore”, de Trindade Coelho, que já conhecia, à jovem brasileira, porque durante a conversa tinham falado de Coimbra e das suas praxes. Uma das meninas, a de Lamego, foi agraciada com a vida e obra do Marquês de Pombal de Camilo, enquanto a “tutora”, do Instituto Politécnico de Viseu, recebeu o livro de Aquilino que acabou por respirar ar puro ao fim de muitos anos. E assim, sabendo que não iria tempo para ler e reler estas obras, acabei por oferecer livros e divulgar a nossa literatura. Fiquei apenas com o livro policial de Rex Stout.

Ao levantar-se, o jovem luso-brasileiro, folheou o velho livro e encontrou um belo poema manuscrito. Letra feminina. Título? “Conserva o teu sorriso”. Um lindo poema que deve ter visto a luz em muitos anos. 

Ofereceu-me!

 

 

 

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