sábado, 18 de fevereiro de 2023

“Biscoitos, pijamas e petingada” …

Manhã nublada e um pouco adocicada. O cheiro do mar leva-me sempre para o mundo da fantasia, mas o dever obrigou-me a cumprir o horário. Portões abertos. Uma senhora de idade, a sorrir, aproximou-se. Perguntei-lhe se me podia ajudar. Sorriu. A meu pedido identificou-se como a diretora da instituição. Fiquei um pouco envergonhado. Não reconheci a irmã. Pedi-lhe desculpa. Muito delicadamente perguntou-me se não queria tomar um café. – Claro que sim, irmã. Levou-me até uma pequena sala onde tirou um café ao mesmo tempo que destapava uma caixa cheia de biscoitos. – Senhor doutor, coma se faz favor. Fiz ontem à noite. Não disse que eram para mim, mas eu entendi perfeitamente que foi essa a intenção. Tirei apenas um bocado, dizendo ao mesmo tempo que a minha condição não permitia comer mais. Sorriu. Confesso que me soube bem, a ponto de lhe dizer: - Irmã. Posso roubar um para levar? – Senhor doutor. Roubar, não! No final das consultas vai levar biscoitos.

As consultas correram muito bem, mas de uma forma original. A primeira funcionária, sorridente, apresentou-se vestida com uma indumentária inusitada. Pijama quente e vistoso. Viu que fiquei intrigado com a vestimenta. Foi então que me explicou que era o “dia do pijama”. Todas as funcionárias apareceram na consulta vestidas com confortáveis pijamas de todas as cores e feitios. Quase que me apeteceu usar também um. No final da manhã, a irmã veio despedir-se e entregou-me um saco com todos os biscoitos que estavam na caixa. Senti logo que ia sair asneira. E saiu. Enfim, também tenho direito a fazer algumas, neste caso foi “abençoada”.

Terminei cedo, o que me permitiu passear um pouco pela cidade, relembrando velhos tempos.
A minha intenção não foi recordar, embora sentisse a presença do passado a meu lado. Um estranho silêncio envolvia o presente. Não quis ouvi-lo. Apenas quis fazer horas para o almoço num restaurante conhecido. Sentei-me e olhei para o mar. Estava um pouco enraivecido. Assim que se aproximou o meio-dia desloquei-me até o velho espaço de restauração. Será que está aberto? Pensei. Sim, estava. Ao entrar, duas senhoras, uma delas a dona, cavaqueavam. Olhou-me e reconheceu-me através de um suave sorriso. Indicou-me a mesa. A funcionária, uma jovem, nomeou os dois pratos. Escolhi a “petingada”. Fui generosamente servido. Não apareceu mais ninguém. No final a dona aproximou-se. Foi então que lhe disse: - Tinha-lhe dito que quando viesse passaria por aqui.  

A história é simples de contar. O dono, que era o seu pai, um bom conversador, tratou-me sempre com enorme simpatia. Na última vez perguntei pelo patrão. A jovem empregada estremeceu bruscamente. Ficou tensa. Após uns breves segundos, em que demorou a dissipar a surpresa, disse: - Mas o senhor Zé faleceu! Como se eu tivesse de saber. Depois contou-me tudo o que se tinha passado. A minha curiosidade levou-me a perguntar-lhe o que iria acontecer ao restaurante. “A filha vai tomar conta”. Pedi-lhe para a chamar. Manifestei-lhe as minhas condolências e contei algumas peripécias passadas com o pai. No final disse-lhe que sempre que fosse à cidade iria almoçar ali, não só porque a comida era boa, mas em homenagem ao pai. O único sítio, onde nunca escolhia a refeição. – Então, veio almoçar, não é verdade? Faça o favor de se sentar. Vou arranjar algo de especial. O senhor não vai arrepender-se. No final, dizia sempre: - Tinha ou não razão? Claro que tinha. Sempre. - Está a ver? Prometi e aqui estou. Sorriu, abraçou-me e deixou cair duas lágrimas.

 

3 comentários:

  1. SMC, só os médicos sabem as histórias da Vida com toda a sua amplidão.

    Abraço

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  2. Sim. Feliz ou infelizmente os médicos são depositários dos tesouros da vida. Por esse motivo sou um verdadeiro milionário. Nem Elon Musk, nem John Rockefeller, nem Bill Gates conseguiram ou alcançarão as profundezas das almas humanas. Todos os dias choro, rio e abraço almas. Entregam-me e depositam em mim o que sentem, o que sofrem, o que amam e o que possam pensar...

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  3. SMC, eu seria um louco infeliz se não tivesse vivido uma meia centúria com estes tesouros. Como disse, feliz é o louco. As vidas que me contaram as suas vidas criaram este tesouro que é a minha mente.

    Abraço

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