sexta-feira, 6 de maio de 2005

"Oh Senhor doutor, foram os seis anos mais felizes da minha vida”…

A vida de um médico está cheia de dramas entremeados com alguns momentos de felicidade. Ao fim de muitos anos de prática pensamos que já vimos tudo, toda a miséria e sofrimento. Mas não, há momentos que nos tocam de uma forma ímpar, obrigando-nos a reflectir sobre tanta coisa. Hoje, numa consulta de rotina no âmbito da medicina do trabalho, confrontei-me com uma trabalhadora que, por força da lei, tem de se submeter a exames periódicos. À pergunta sacramental, se andava bem de saúde ou se tinha algum problema, respondeu-me que não, que não tinha qualquer problema de saúde. Mas a forma como disse, aliada à experiência de muitos anos que nos permite perscrutar a alma, senti que havia qualquer coisa naquela afirmação, dita com um sorriso triste, mesmo triste. Cuidadosamente, abordei-a no sentido de saber o que tinha acontecido e, naturalmente, explicou-me que lhe tinha falecido uma filha há seis meses, com cerca de sete anos, vítima de tumor cerebral. Fiquei com uma sensação de secura na boca e um mal-estar que me pôs tonto. Possibilitei-lhe a continuação do relato, evitando quaisquer comentários que pudessem ferir uma alma tão atormentada e aparentemente tão calma. Só tinha aquela filha. O sufoco agravou-se, e, para a ter teve de se submeter a exames e a tratamentos durante mais de cinco anos, até que conseguiu alcançar o desejo da satisfação da maternidade. Perante esta descrição, e, talvez, antecipando quaisquer pensamentos do género: se a natureza tivesse sido respeitada, não teria tido a criança e, consequentemente, não sofreria com o seu prematuro desaparecimento, avançou logo com a frase: - Oh Senhor doutor foram os seis anos mais felizes da minha vida.
Esta mulher recorreu às novas tecnologias médicas. Fez sacrifícios. Teve a felicidade de ter uma filha. Teve a infelicidade de a perder. Hoje, esta mulher fez-me recordar que não damos atenção aos inúmeros pequenos momentos de alegria que diariamente passam entre as mãos. Nem sabemos saboreá-los. Cheguei a casa e brinquei com a minha neta de uma forma muito diferente, pensando sempre no drama daquela mulher. Não sei se os blogs servem para relatar estas coisas ou não, mas que tenho necessidade de partilhar esta vivência, ai isso tenho…

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