quinta-feira, 24 de novembro de 2011

As traduções da greve

Ouvi hoje alguém (não cheguei a perceber quem era) classificar esta greve de “estúpida” porque, no seu entender, não vale a pena protestar contra o que não tem remédio. E dava como exemplo a seguir um breve diálogo com um varredor de ruas que lhe teria dito, logo pela manhã, que não fazia greve porque tinha conseguido esse trabalho há dois meses, depois de um largo e aflitivo período de desemprego e que agora a sua única preocupação era não perder um único dia de salário. O tal comentador exultava com o caso, que assim é que era, este homem é que tinha compreendido a situação.
Discordo em absoluto desta análise, o tal homem é um exemplo do extremo desespero a que se pode chegar, não é a sensatez nem o conformismo que o detêm mas apenas o estado de absoluta necessidade. E é este sentimento de derrota que nos deve alertar. Em primeiro lugar, as greves não têm que ter uma “utilidade” imediata em termos de solução de problemas ou de alteração do rumo que causa descontentamento. As greves e outras iniciativas sindicais são uma forma legítima de expressão de um sentimento colectivo, por isso é tão importante apurar-se os níveis de adesão, os sectores mais afectados e o modo como as populações simpatizam ou não com a iniciativa. Parece-me, de resto, incrível, que se venha à liça considerar que as iniciativas de protesto devidamente organizadas e ordeiras são inúteis, ou prejudiciais, porque a situação que vivemos é absolutamente imperativa e não há forma de lhe fugir. Acho muito grave que se confronte abertamente as pessoas revoltadas com a total impotência da sua manifestação de vontade, ou da capacidade de agir daqueles a quem o clamor se dirige. Acho mesmo intolerável que se assuma que mais vale sofrer em silêncio porque tudo está determinado, a via única e indiscutível veio para ficar, por cá e em todo o lado, as regras são para aplicar tal e qual, sejam justas, sejam injustas, sejam lógicas ou sejam inconsequentes, “alguém” (que não nenhum de nós nem dos nossos representantes eleitos) zela pelo andamento das coisas e não há tempo nem paciência para ouvir protestos, a não ser o dos “mercados”, vagamente interpretáveis, porque esses, mesmo que impossíveis de prever e entender, doem de imediato.
É bastante evidente, para mim, que as pessoas têm plena consciência da gravidade da situação económica, e também acredito que não precisamos que se explique que não é com greves que se progride nesse campo, como se as pessoas fossem tolas e não soubessem isso. Mas é importante que as pessoas exprimam as suas angústias e o seu desespero de uma forma organizada e através das instituições próprias, as organizações sindicais, que não devem ser desvalorizadas mas sim respeitadas e ouvidas, sob pena de um dia qualquer o silêncio e a passividade, que hoje tantos consideram recomendáveis e atilados, explodirem de repente em tumultos sem que ninguém os consiga enfrentar.
A política não é só economia e a gestão das sociedades nem sempre obedece à lógica dos discursos racionais e do “tem que ser”. Em democracia, se é que ainda vale a pena não desistirmos dela, a expressão dos sentimentos não se esgota apenas no voto livre, ela exige um exercício permanente de diálogo para que se atenue o que for possível atenuar, mesmo que só valha pelo esforço. E, neste clima de inevitabilidade, todos os esforços são úteis, mesmo que não falem a mesma linguagem das equações orçamentais. Nem sempre o silêncio e a quietude são tranquilizadores, nas situações graves é essencial saber ouvir e saber traduzir.

21 comentários:

  1. Excelente post!.
    A pluralidade de opiniões expressas aqui no 4R são bem demonstrativas do espírito democrático e de liberdade que animam os autores e comentaristas. É esta mais-valia que convém preservar, a bem da república.

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  2. Cara Suzana,
    Os meus parabéns. Pela clareza e lucidez. E também pela coragem. É mesmo preciso afirmar e reafirmar o que é viver em democracia. E exercê-la, para que não se perca o hábito e o "jeito". Há ainda muita gente a esquecer-se disso (vide posts seguintes aqui no 4R). E se nos formos esquecendo disso, um dia acordamos e verificamos que ela já não existe.
    Exercer a democracia é, antes de mais, respeitar os que têm opinião distinta da nossa. Que agem de forma diferente, que têm essa coragem. Esses não são os imbecis. Esses são os que ainda se dão ao trabalho de lutar, correndo o risco de não ter razão.

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  3. Excelente lição de democracia, Suzana. Que não caia em saco roto para os seus confrades de blogue. Parabéns.

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  4. Cara Suzana:
    Não me afasto do que referiu e considero que tem razão em muito do que diz.
    Mas, e há sempre um mas, uma greve deve ter um fim geral útil, e esta não tem. Uma greve deve ser oportuna e esta não é. Seria oportuna se fosse feita quando foram executadas as políticas que levaram a esta situação. Aí é que se veria liderança e desejo de bem servir por parte dos sindicatos. Agora, é tarde, é puro oportunismo e mera exploração dos mais necessitados e desfavorecidos.
    Claro que há descontentamento e ele é maior agora. Acontece que a greve, para além de assentar em pressupostos errados e sem nexo( poder do capital financeiro, especulação dos mercados, insanável maldade governamental, cinismo da Tryka, etc, etc,)conduz esse descontentamento precisamente para quem lhe quer remediar as verdadeiras causas, que estiveram numa política insustentável que levou a rupturas de toda a ordem nas finanças públicas. E que durou até que os credores, que já nos emprestavam dinheiro para pagar os juros, disseram não.
    Portanto, cara Suzana, se nada tenho contra a greve, tenho tudo contra esta greve. Até pelo nome. Greve geral é que não é. Ouvi rádio e vi televisão, fui aos correios e ao banco, entrei na papelaria para comprar o jornal e meter o totoloto, pus gasolina no carro, fui à Loja do Cidadão e estive no balcão da Endesa, a empregada que trabalha em minha casa utilizou o comboio e veio trabalhar, etc, etc. Greve geral?

    Caro SC:
    Refere que, e transcrevo "é mesmo preciso afirmar e reafirmar o que é viver em democracia. E exercê-la, para que não se perca o hábito e o "jeito". Há ainda muita gente a esquecer-se disso (vide posts seguintes aqui no 4R)".
    Pois, meu caro SC, a democracia está em aceitar opiniões discordantes. A democracia não está em não as criticar, isto é, ouvir e calar.
    E faço-lhe justiça, não crendo que o meu amigo, a propósito das opiniões aqui expressas sobre a greve geral, tenha ido à pressa comprar um democraciómetro mal amanhado para medir a democracia dos autores e comentadores...

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  5. Caro Manuel Pinto:
    Digo-lhe o mesmo que ao SC: faço-lhe justiça, não crendo que o meu amigo, a propósito das opiniões aqui expressas sobre a greve geral, tenha ido à pressa comprar um democraciómetro mal amanhado para medir a democracia dos autores e comentadores...

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  6. Cara Suzana,

    Discordo de tudo. Democracia é o regime onde, quando somos questionados, a minha opinião vale tanto como a sua. Não o regime onde por falar mais alto a sua opinião vale mais que a minha. Democracia começa exactamente por reconhecer que a cada Homem deve caber o mesmo voto. O resto são expressões da liberdade que, sendo consequência da democracia, não são democracia.

    Quando uma minoria tenta, por meio da sua posição vantajosa na economia, falar mais alto que eu, fazer com que a sua opinião valha mais que a minha, eu sou muito mais radical que o caro Pinho Cardão. Eu não só condeno a "greve geral" como acho que é um enorme atentado à democracia e como tal devia ser rechaçada a tiro. Se fossem os banqueiros a fazer lockout para parar o país não faltaria a declaração de estado de emergência.

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  7. Caro Pinho Cardão.
    Presumo que o seu último comentário me era dirigido. Mas não foi essa imprecisão que me trouxe novamente a esta caixa de comentários. Vim cá para sublinhar uma ideia que foi muito bem explanada pela Suzana e que dispensa qualquer democratidómetro mal amanhado.
    A oportunidade e a utilidade de uma greve devem ser aferidas por quem a decreta. Mesmo que a adesão seja pouco significativa, ela será sempre útil para quem a realiza. Claro que a expressão, ou melhor, a dimensão do descontentamento tem um significado político. É aqui que entra a “opinatite” e até os disparates do toniblair fazem sentido.

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  8. «um exercício permanente de diálogo»
    Onde, na via pública?
    Talvez a comprovar a inutilidade ou estupidez de tantos diálogos no Parlamento.
    Nas suas Comissões Parlamentares de Generalidades.
    Que após três décadas de sucesso democrático, me levaram hoje a formular na roda do café de bairro:
    A democracia é a continuação da exploração por outros meios.

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  9. caro jotac, como comentador residente quase desde o início do 4r já não se devia surpreender com esta diversidade de opiniões, é por isso mesmo que aqui nos juntamos, para cada um dizer o que pensa e aguardar saber também o que os outros pensam do que disse, concorde-se ou não.
    Caro SC, são pontos de vista que estão longe de ser consensuais, não sei quem tem razão, eu limito-me a expressar o que penso e que posso aferir do que vejo,é um contributo de consciência, mas admito que haja quem, com a mesma convicção, defenda outro ponto de vista.
    caro Miguel Pinto, obrigada, mas vale sempre a pena confrontar as também avisadas opiniões em contrário, sobretudo porque são coerentes e igualmente desafrontadas.
    caro Pinho Cardão, não me lembro de nenhuma greve, geral ou não, que tenha sido considerada oportuna, adequada ou útil. E vi muitas. Acho que interessa muito pouco a contabilidade para manter o meu comentário, se houve pouca adesão há que tirar conclusões daí, o prejuízo terá então sido pequeno à economia, se houve muita e se quer ignorar isso haverá dois prejuízos, o provocado à economia e o de não se apaziguarem as pessoas.
    Caro tonibler, a sua voz, se a quiser fazer ouvir, vale tanto como a de qualquer outro, desde que a faça ouvir, creio que é isso que tentam os manifestantes, fazer-se ouvir,se lhe parece "apenas" uma manifestação de liberdade isso a mim chega-me perfeitamente para a respeitar. Mas uma greve conjunta de todas as organizações sindicais deve ser levada a sério, não serve de nada desvalorizar, o quenão quer dizer que se mude o que, pelos vistos, é inexorável. È o que digo acima, se ler bem.
    Caro Bmonteiro, não é na via pública, a menos que, como parece, considera que todos os lugares próprios, a começar pelo Parlamento, são de desconsiderar. Receio que seja precisamente por isso que as greves são tão frequentes... E muito prazer em vê-lo por aqui de novo :))preparado para uma bela polémica!

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Não creio que as verdadeiras motivações dos grevistas de hoje sejam as mesmas de há dez, ou vinte anos atrás. Estou convicto que nos dias de hoje a generalidade dos grevistas tem consciência que a crise que vivemos não tem nada a ver com a vontade política de quem nos governa, mas das forças sem rosto que dominam a finança e o mundo, que sufocam os países com juros especulativos e obrigam a critérios economicistas que inevitavelmente levam a que haja sentimentos de revolta.

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  12. Caro jotaC:
    Quando deixámos de ter dinheiro para sequer pagar os juros, a taxa era apenas duas ou três décimas superior à que a Alemanha pagava...
    Os juros altos vieram depois. Naturalmente.
    Agora uma pergunta: alguém continuava a emprestar dinheiro a quem lhe pedia mais dinheiro para pagar os próprios juros? Então o credor que, no fim, paga a si próprio os juros do devedor ainda é insultado por isso?

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  13. Suzana
    Se outra função não tivesse, esta greve serve de escape organizado e ordeiro da tensão social provocada pelas medidas de austeridade. Por mais necessárias que estas medidas se apresentem não deixam de ser de uma enorme dureza e dramáticas para muitas pessoas e famílias.
    É bom que haja um canal ordenado para exprimir as angústias e o desespero e que lhe seja dado a devida atenção. Menosprezar os sentimentos das pessoas numa situação de austeridade tão grave seria um erro que em nada ajudaria à paz social de que precisamos para vencer a crise.

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  14. Suzana Toscano, vá explicando aos pintainhos que o terreno não deve ficar livre aos chacais que nos levaram a este descalabro e às hienas que rindo-se vão mordendo a presa.

    Vejo que só no arco presidencial é que estão com os olhos bem abertos e dão o exemplo entrando amiúde mar adentro. Mas amanhã é dia 25 de Novembro, pode ser que alguma coisa mude à direita do PS.

    E mudar quer dizer pura e simplesmente cada macaco em seu galho.

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  15. Caro Drº Pinho Cardão,
    Permita-me que lhe conte com esta minha singeleza a relação com os meus investidores, os bancos.
    Sempre que recorri a empréstimos a minha taxa de esforço foi ponderada, o meu estado de saúde esmiuçado ao pormenor, não fosse juntar os tamancos antes do tempo (!); mas em nenhuma circunstância (e conto quatro), me foram impostos juros agiotas por ser considerado insolvente!... E é este comportamento especulativo dos mercados que não compreendo, e que está a levar a união à procura de soluções alternativas. Concorda?

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  16. Caro jotaC:
    O meu amigo dá a resposta, citando o seu caso pessoal. Ponderou sempre os efeitos do recurso ao crédito, coisa que Sócrates e Teixeira dos Santos nunca fizeram. Mas quanto aos juros agiotas, parece, e desculpe se erro, que há por aí alguma confusão. Uma coisa são os juros das emissões da dívida e outra coisa, bem diferente, são os yields a que a mesma é transaccionada no mercado secundário. Isto é, acontece que há entidades que possuem dívida portuguesa que estão interessados em vender e outras a comprar. Mas estes só compram a um preço abaixo do valor nominal, de forma a que lhes seja garantida determinada rentabilidade. Uma OT com valor nominal de 1000 euros com um taxa de 5% rende 50 euros. Mas se alguém se quiser desfazer dessa OT e eu a comprar no mercado secundário por 500 euros, os mesmos 50 euros representam uma rendabilidade de 10%Ora isto não significa que o Estado esteja a pagar os 10%; o Estado só paga 5%,isto é, 50 euros, mas a minha rentabilidade é de 10%. Claro que os preços do mercado secundário influenciam os ptreços de emissão. Acontece que estes, neste momento, em Portugal, são os fixados pela Troyka e não se poderão classificar de especulativos.
    Portanto, caro jotaC, salvo no período imediatamente antes de Portugal ter pedido o apoio da Troyca, os juros da dívida portuguesa não têm sido especulativos; altos, sim, porque o risco é naturalmente considerado grande.
    E desculpe se me excedi na explicação.

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  17. Ora essa! Não se excedeu em nada na explicação, pelo contrário, acredite que a registei com todo o agrado.

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  18. Caro JotaC,

    Pode fazer o mesmo exercício ao estado português que o banco fez consigo.Taxa de esforço, registo criminal, capacidade de crescimento, ...

    Toda a gente que alguma vez tenha fornecido o que quer que seja ao estado português mete-lhe em cima uns 30% no preço para compensar o risco de não pagarem, de passarem anos sem receber, de haver truques de não pagarem e passarem a vida a pedir certidões de dívida à segurança social(esta foi a última que uma empresa pública me fez, ferrou o calote à quase um ano e,de 3 em 3 meses, pede a certidão, não vá eu ser um caloteiro...).

    Diga-me, os 30% que qualquer português cobra de juros ao estado parecem-lhe piores ou melhores que os juros que os mercados financeiros exigem (no secundário) para comprar dívida do estado português? A verdade é que para os portugueses o estado português sempre teve (merecidamente) rating ZZZ. E nisso a culpa é fácil de encontrar.

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  19. Cara Suzana,

    Todos temos formas mais fortes de nos fazer ouvir. Em democracia, todos têm a mesma força quando chega a hora de decidir. Se alguém, por força das circunstâncias, tenta que a sua opinião valha mais que a dos outros no mesmo objecto que esteve a sufrágio, esse alguém merece cadeia, não merece ser ouvido. Veja-se o fascista do Carvalho da Silva que ontem já dizia que a greve serve de suporte a uma alternativa. Suponho que alternativa à democracia...

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  20. Caro Tonibler, num mundo a régua e esquadro talvez fosse assim. Num mundo real a democracia é o resultado de um equilíbrio permanente entre forças antagónicas ou divergentes, em que o resultado final se deveria saldar pela defesa dos interesses colectivos e pela protecção dos legitimos interesses e liberdades individuais.Quem tem opiniões e interesses pode e deve manifestá-los livremente, quem tem o poder de decidir pode e deve avaliá-los devidamente, decidindo com justiça e tendo em vista o progresso eo desenvolvimento dos povos. Dir-me-á que é difícil? Sem dúvida, mas temos sempre que tentar, a alternativa é confiar em sábios despóticos que se julgam donos da verdade.

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