segunda-feira, 1 de agosto de 2005

Cirurgia espiritual…


"Cirurgia" (1966)
de Cecilia Ravero Oneto
Galeria de Arte Moderna - Génova


Na sequência de vários estudos foi possível verificar que certas situações podiam melhorar de uma forma ímpar se os doentes tomassem a sério a prescrição dos seus médicos assistentes. De facto, estamos muito longe da verdadeira eficiência terapêutica. As razões para a baixa adesão são várias: falta de compreensão, desconfiança, efeitos secundários, disponibilidades financeiras, entre outras. O fenómeno não é só nosso. Por essa Europa fora, estima-se em cerca de 50% a proporção de doentes que não tomam os seus fármacos de acordo com a prescrição clínica.
Claro que, de todas as causas, a atitude cultural deverá ser a mais prevalente e, consequentemente, a mais difícil de erradicar.
A análise deste fenómeno fez-me recordar um episódio passado com um doente há já uns bons anos.
Certo dia, apareceu-me no consultório um senhor que já conhecia desde miúdo. Tratava-se de alguém muito considerado, quer na sua profissão, relojoeiro, quer na sociedade. Honrado, amigo do seu amigo, sempre pronto a ajudar quem necessitasse e com uma cultura religiosa própria não ortodoxa. Fiquei surpreendido com a sua presença. O seu ar de austeridade, e porte aristocrático, intimidavam qualquer um, mas, no fundo, era uma criatura bondosa que levava aos limites as máximas cristãs.
Claro que, após as trocas habituais de cumprimentos, tanto mais que não o via há muito tempo, comecei a perguntar-lhe se estava doente, apesar de um aparente ar saudável. Disse-me que sim. Andava com problemas em urinar, facto que logo interpretei como natural, atendendo à idade. Mas, de imediato, mudei de opinião ao ouvir que quando urinava sentia qualquer coisa como tojos na bexiga. Aí fiquei logo preocupado. Após mais umas perguntas tive de lhe explicar da necessidade de efectuar algumas observações. No decurso do exame, uma massa dura e volumosa confirmou a minha hipótese de que estava perante um quadro clínico tumoral que exigia tratamento imediato. Expliquei que perante a situação deveria ser observado e hospitalizado a fim de resolver, o mais rapidamente possível, o seu problema. Fui comedido, mas suficientemente determinado para o conduzir a um colega da especialidade. Escrevi uma carta solicitando a resolução do problema e, ao mesmo tempo, recomendei-o, com toda a naturalidade. Fui avançando que o caso iria ter uma solução cirúrgica, facto que aceitou sem pestanejar. À saída pedi-lhe que me fosse dando notícias. Disse-me de imediato: - Pode estar certo que voltarei e depois conto-lhe tudo.
Passado alguns meses, não muitos, no fim de uma tarde outonal, apareceu-me novamente com o mesmo ar, aparentando saúde, sem sinais que traduzissem uma cirurgia mais agressiva ou a evolução da própria doença. Elogiei o seu aspecto e fiquei satisfeito com o facto.
Perguntei-lhe se já tinha sido operado. – Claro que fui operado! – E a recuperação foi difícil? – Não! Foi muito fácil e rápida. À medida que a conversa decorria, as surpresas iam aumentando. Mas o melhor, ou antes, o pior estava para vir. Perguntei-lhe: - Quanto tempo esteve hospitalizado? – Respondeu que não tinha estado hospitalizado. – Não esteve hospitalizado? Não foi operado em Coimbra? – Não! Fui operado na Figueira. – Na Figueira?! Cada vez ficava mais confuso com toda aquela conversa. – Mas, afinal quem é que o operou? – Foi um médico do Além. – Do Além?! – Sim! Fui operado espiritualmente. Aqui fiquei estarrecido. Já não sabia o que dizer. Nem consegui esboçar qualquer sinal de indignação. – É verdade. Foi um sucesso. Vim aqui para lhe demonstrar que se podem fazer cirurgias espiritualmente. O poder do Além é extraordinário. Não concorda, senhor doutor? Bom, aqui, apenas lhe perguntei como é que se sentia. Disse-me que estava muito melhor, já nem sentia os tojos na bexiga. Mais uns minutos de conversa, meramente circunstanciais a prever que seria uma última conversa com um ser humano que muito respeitava, e acompanhei-o à porta, manifestando-lhe não só cordialidade como também carinho. Despedi-me e desejei-lhe a continuação das melhoras. Escusado será dizer que nunca mais regressou. Passado pouco tempo tive conhecimento do seu falecimento. Um genuíno e dramático exemplo de não adesão à terapêutica proposta. Conhecendo a sua personalidade, estou convicto de que, no Além, não fez qualquer queixa do cirurgião que o operou espiritualmente…

3 comentários:

  1. Essa relação de confiança é realmente muito difícil de estabelecer, Massano Cardoso, sobretudo porque muitas vezes os doentes não fazem a mínima ideia dos motivo por que têm que tomar os medicamentos (quando é o caso)ou não encontram no médico os sinais de interesse que era necessário para suscitar essa confiança. Não seria melhor se houvesse mais algumas informações quando se prescreve ou diagnostica? Ou há alguma coisa que o desaconselhe, salvo casos evidentes? Já me tenho confrontado muitas vezes com esse dilema - sigo, não sigo o que o médico disso - e já me arrependi num caso e noutro...Por isso gostei muito da sua reflexão, bem ilustrada com um caso extremo.

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  2. O seu texto é muito elucidativo, e confirma o que se passa em muitos consultórios deste país, decerto.
    No entanto, reponho a questão noutros termos: quantos médicos explicam ao doente por que razão tomam isto ou aquilo?
    A minha experiência como doente, quando não conheço o médico a que tenho que recorrer em casos mais urgentes, é que tenho que arrancar a ferros qualquer explicação. E muitas vezes essa explicação é dada a contragosto.
    Nos centos de saúde é o mais habitual, lamento dizê-lo.
    Claro que o meu médico habitual não é assim, e foi essa uma das razões por que o escolhi, mas tenho que o pagar bem pago, ou em alternativa, vou uma manhã inteira para o Centro de Saúde para ser visto e receitado em menos de cinco minutos.

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  3. É óbvio que os médicos não deixam de ter a sua quota-parte de responsabilidade no problema de aderência. O esquema clássico de superioridade sociológica do médico ao prescrever terá de ser substituído por uma nova forma: "negociar" a terapêutica, ou seja, médico e doente deverão colocar-se no mesmo plano e tentar solucionar problemas, cabendo, inclusive, ao doente uma participação activa na terapêutica a que vai ser sujeito. Sei, perfeitamente, que estamos ainda muito longe deste desiderato, mas temos que caminhar nesse sentido. Vai levar o seu tempo, mas temos de começar por algum lado. Só assim poderemos usufruir o elevado potencial do arsenal terapêutico que já dispomos.

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