quinta-feira, 20 de abril de 2006

Acertos e trocadilhos

Quando a minha avó me respondeu aquilo, achei que ela estava a desconversar.
Eu era na altura uma jovem mãe de duas garotas refilonas que se fartavam de protestar durante os passeios que fazíamos ao fim de semana. Queixava-me eu de que, em vez de irem contentes e bem dispostas por irem connosco ver coisas novas, passavam o tempo a reclamar da distância, das paragens, da comida…Mais valia ficarmos em casa!
Foi aí que ela me disse:
- Em vez de as levarem a passear convosco, experimentem ir vocês passear com elas…
Ora isto pareceu-me um trocadilho, mas era um conselho avisado cuja utilidade reconheci vezes sem conta.
De facto, pertenço a uma geração em que a independência tardia dos nossos filhos coincide com a dependência entretanto criada com o envelhecimento dos nossos pais, num processo de transferência de atenção que prolonga e agrava a necessidade – e a vontade! - de conciliar os tempos livres com o máximo proveito para todos.
Ou seja, não basta “agregá-los” aos nossos programas, é preciso gerir cada espaço de modo a fazê-los felizes a eles, sem prescindir dos nossos próprios momentos. Mais vale um tempo curto com dedicatória, do que um dia inteiro de impaciência mal contida. Senão, acabamos todos desconsolados e a dar o tempo como perdido.
E isso é ainda mais difícil quando se trata de adultos que já viveram a sua independência, que têm hábitos arreigados de que não fizemos parte, que só se encontram nas suas referências e não estão dispostos a grandes inovações. Quando não se tem isso em conta, o mais certo é que se vão espaçando as visitas, os passeios conjuntos vão sendo adiados, com aquele encolher de ombros de quem diz “eu tentei, mas…” Daí à solidão e ao abandono dos pais ou avós vai um pequeno passo, que se torna num abismo imenso que engole os afectos de uma vida..
De modo que outro dia, quando uma amiga, que tem o pai com 83 anos, me dizia com amargura: “Não vale a pena levá-lo a passear comigo!, disse-me que é um alívio quando chega a casa!...” vinguei-me da minha avó e respondi:
- “Tens razão. Não o leves a passear contigo. Vai antes tu passear com ele”.
E ela achou que era eu a desconversar…

6 comentários:

  1. Sabe Suzana Toscano,
    para os mediterrâneos, os filhos são sua propriedade, os nórdicos consideram que estão emprestados por um tempo.
    Assim até pareçe mais claro, não é?
    Cumprimentos
    Adriano Volframista

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  2. Cara Drª Suzana Toscano, este seu magnífico texto revela a sábia e profunda humanidade da senhora sua avó, que tão bem soube apreender e transmitir-nos, como lição de vida. É este um daqueles posts do 4R que vai direitinho para a minha colecção, e espero vir a lê-lo em versão papel, algures no futuro.
    :)
    Se as situações de desconforto dos mais velhos e de aborrecimento dos mais novos, nesses passeios em família, são, efectivamente, minimizadas com a adequação dos programas, ou a nossa capacidade de ir passear com eles, parece-me que, genericamente, o caso dos adolescentes e muito jovens adultos não é resolúvel com essa abordagem. Nessa fase da vida, eles julgam-nos incapazes de entender, e ainda menos capazes de alinhar, nos seus programas, e "morreriam" em ter-nos a participar destes. É por isso frequente que os programas familiares acabem, ou se tornem um esporádico e constrangedor ritual, que, como diz, mina um passado de cumplicidades e pode pôr em risco um futuro de afectos. Bastará deixar o tempo passar e esperar que passe? Tradicionalmente, era esse o "percurso", ou as fases da vida dos afectos, mas com as profundas mudanças que se têm dado nas relações pessoais e familiares, não sei não...

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  3. Caro Adriano Volframista, de facto essa noção de "propriedade" faz toda a diferença nas atitudes. Mas não é inteiramente racionalizável e lá vem aquele impulso dominador de impor aos filhos a "posse" (do que eles se defendem) ao mesmo tempo que os nossos pais, já bem velhinhos,se voltam de novo para nós como se fossemos propriedade deles (e nós sem coragem para desmentir...). Daí as dificuldades.
    Caro Crack, obrigada pelo que disse ;)mas não seja exigente ao ponto de querer abranger os filhos adolescentes neste equilíbrio impossível!A questão é que as crianças e os velhos dependem de nós, não podem fazer os seus próprios programas sem que o nosso tempo fique condicionado por isso e nós acabamos por tentar combinações colectivas que são um desastre e uma frustração. Os adolescentes querem é a sua independência, por isso rejeitam tutelas, aí é mais uma questão de ir soltando "a corda" devagarinho. Os outros precisam de nós mas tem que ser à maneira deles, senão não serve.É complicado, sem dúvida, e é por isso que já ouvi chamar "geração sandwich" aos que ficam no meio desta mudança geracional...

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  4. Anónimo12:54

    Suzana, mais uma vez uma bela, serena e correcta visão da vida e das intricadas relações humanas, designadamente no contexto familiar e intergeracional.
    O "rapport" (ou estado de harmonia) só se obtém, definitivamente, quando duas pessoas desenvolvem um sentimento mútuo de empatia, bem-estar e segurança. Isto é, quando se estabelece uma relação de confiança mútua.
    A via para o "rapport" é o "pacing", ou o caminho a percorrer no sentido de nos tornarmos comuns ao outro. A versatilidade de processos é uma condição necessária a este percurso, o qual é mais fácil e mais curto quando ambas as pessoas (e não apenas uma) se fazem ao caminho.
    Por vezes a confluência dos caminhantes não é fácil porque, apesar do aparente movimento de aproximação, não reparam que seguem por caminhos paralelos, ignorando os cruzamentos e entroncamentos. Não analisam bem a cartografia humana e concluem, a partir de um olhar fugaz, que as estradas são de via única. Se somarmos à diversidade dos olhares e das rotas a diferença das percepções – visuais, auditivas e cinestésicas –, então compreendemos que a qualidade dos afectos e a resolução dos problemas (por nós identificados) começa sempre no eu e não no outro.
    Alguém me dizia há dias, com alguma graça, que a democracia existia quando nós tínhamos o poder de mandar nos outros e a ditadura começava quando os outros passavam a mandar em nós.
    Não é fácil construírem-se relações fortes, serenas, lúcidas e produtivas mas, de outro modo, sem exigência, alguma tensão e muita tolerância, a vida também é uma sensaboria.

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  5. Caro Felix Esménio, o seu texto explica plenamente o que eu tentei abordar e é um excelente contributo para compreendermos a razão de muitos problemas em que tropeçamos sem encontrar soluções. É que tendemos a começar no "outro" e a partir daí achar que é fácil, é só porque o outro não quer...bem aoa contrário do que tão bem ilustra no seu texto.

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  6. Anónimo15:40

    Eis um daqueles posts que confirmam que vir até aqui não é desperdício de tempo.

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