Certos acontecimentos provocam-nos mal-estar e até um certo desencanto. Hoje, tive oportunidade de ver uma senhora que há cerca de seis a sete anos viveu um período dramático. Quase que não a reconheci. Bastante envelhecida e com ar muito triste, típico dos depressivos, vinha acompanhada da filha adolescente, bonita, bem cuidada e portadora de um sorriso meio triste, tradutor de uma sentida preocupação. Foi a voz que me levou a dar atenção aos traços faciais, permitindo deste modo identificá-la. Acto contínuo, lembrei-me do filho que, no início da adolescência, esteve na iminência de morrer devido a uma grave doença do sangue e que graças a um transplante, no qual me empenhei de forma muito particular e intensa, acabou por evitar uma morte anunciada. Não fiz qualquer comentário ao assunto, deixando que a senhora expusesse os motivos da sua visita. Tal como previa, passou a descrever um conjunto de sintomas e sinais de uma depressão. Apesar de no passado já ter passado por algo semelhante, diz-nos a experiência que temos de procurar factores exógenos. Foi o que fiz, perguntando-lhe se nos últimos tempos tinha ocorrido algo de relevante na sua vida que pudesse justificar a situação. Falou do marido, dos seus hábitos e estilos de vida menos saudáveis, e que eram fonte de preocupação. Importantes sem sombra de dúvida. O meu silêncio, propositado, foi suficiente para deslocar a atenção para o filho. Assim que começou a falar, teceu um conjunto de laudatórias considerações sobre o papel que desempenhei na altura da grave doença, voltando a agradecer tudo o que tinha feito. Perguntei-lhe se estava bem de saúde, que idade tinha neste momento e o que fazia. Quanto ao problema da doença estava tudo bem, estava curado. Mas o pior foi quando me olhou com um ar meio destruído dizendo: - "Oh senhor doutor, ele não trabalha, não permanece tempo nenhum nos empregos, faz vida de noite e ninguém me tira da cabeça que não se droga!" Antes de iniciar a frase, a parte interna do olho direito da filha começou a ficar meio brilhante anunciando lágrimas de dor. E assim foi! A conversa passou a desenhar-se ao redor deste assunto, da negação permanente por parte do filho, mesmo quando confrontado com evidências mais do que suficientes dos produtos aditivos, das suas reacções e das companhias, entre as quais se conta um jovem que também no início da adolescência sofreu um cancro do sistema linfático que foi curado, tendo na altura provocado as normais angústias e dor nos familiares. Vi e acompanhei o sofrimento e o desespero de ambas as famílias. Vi e congratulei-me com a vitória sobre doenças que ceifariam a vida de duas crianças. Vi renascer a alegria e a vontade de viver. Enquanto pensava nesta dualidade, dois jovens que estiveram condenados à morte, e que ao renascerem optaram por formas de conduta que poderão provocar se não a morte física mas outras formas de morte, a doente apressou-se a dizer: - “Oh senhor doutor como é possível desperdiçarem a vida depois de terem vencido a morte? Deviam dar graças a Deus e agora procedem desta maneira”.
A conversa continuou sempre debaixo do olhar triste e sem ânimo da jovem de dezasseis anos. Não deixei de transmitir esperança, muita esperança, embora interiormente sentisse um desencanto e um mal-estar que nem agora consigo disfarçar…
A conversa continuou sempre debaixo do olhar triste e sem ânimo da jovem de dezasseis anos. Não deixei de transmitir esperança, muita esperança, embora interiormente sentisse um desencanto e um mal-estar que nem agora consigo disfarçar…
Caro Professor Massano Cardoso,
ResponderEliminarA história que nos conta dá que pensar sobre a vida. Alguns pensamentos simples me ocorrem, que creio posso partilhar.
A vida é difícil. O que a torna difícil é a dolorosa confrontação dos problemas, provocando desgosto e tristeza.
E para os enfrentarmos, os problemas acabam por ser fonte de coragem e sabedoria, sem o que seria ainda mais difícil suportar o sofrimento.
E muitas vezes não reconhecemos a "graça" que surge diante de nós, desaproveitando o dom da vida.
Na sua história há de tudo um pouco.
Compreendo o seu desencanto, mas também os encantos, assim como os da família da sua história.
Entre o ânimo e o desânimo, a esperança e a falta dela, entre a vida e a morte, na realidade, a diferença é sempre tão curta, que nos custa a entender certos comportamentos...
ResponderEliminarOs encantos e os desencantos da VIDA! Resta-nos uma lágrima de dor perante estes cenários...! Sem que isso nos leve à fuga à luta por um Mundo melhor, e mais forte!
Caro Prof. Massano Cardoso, o que é que poderá sentir um jovem que esteve na eminência de morrer? Uma das características da juventude é sentirem-se imortais, como se o perigo não os tocasse e à vida fosse uma estrada sem fim cheia de promessas ao alcance dos seus sonhos. Talvez a noção brutal da finitude tivesse atingido o seu doente, dando-lhe a noção de que tem que explorar os seus limites, como um desfio à natureza, uma espécie de vingança inconsciente sobre o desengano que o atingiu cedo demais. Não sei se uma mãe deprimida, sempre a lembrá-lo de que deve estar grato por ter tido mais uma oportunidade, não seja a companhia ideal para o orientar, essa atitude do rapaz/homem parece ser um desafio. Em qualquer dos lados, parece haver o medo, no dela, defensivo, no dele, atrevido, a esbanjar uma dádiva que não quer valorizar porque já a teria por direito próprio antes da doença. Deve ser terrível para ambos.
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