Há pouco tempo fui convidado para escrever e coordenar um relatório sobre alcoolismo juvenil, fenómeno complexo e actual com graves consequências pessoais e sociais. Não obstante o muito que se diz e o que se faz, e o que já se disse e o que se fez, sobre este flagelo, o que é certo é que continua a atormentar os responsáveis incapazes de encontrarem soluções eficazes a uma efectiva redução e prevenção. A adopção de comportamentos, tipo "binge drink", por exemplo, com o objectivo de sentir os efeitos imediatos de uma súbita hiperalcoolemia, vem reforçar as nossas preocupações.
O fenómeno do alcoolismo é muito antigo e a sua faceta juvenil também.
Quando andava na escola, os bêbados abundavam em qualquer lugar. Ao fim da manhã e princípio da tarde já eram visíveis alguns ébrios antevendo o festival dos fins de tarde e noites.
Marcou-me uma cena ocorrida numa manhã, particularmente fria de Inverno, na minha escola primária. Devia andar na segunda classe. O professor chamou o Afonso, "Caporro" de apodo, para ir ao quadro. De calções e alpergatas, a tiritar de frio, o "Caporro" lá se arrastou. O professor mandou-lhe montar uma conta simples, e com o giz tentou escrever algo, mas não conseguiu. Apoiava-se com o ombro esquerdo no quadro e face voltada em sentido contrário à secretária. O mestre escola, baixo, careca, e meio obeso, saltou com uma agilidade felina, acompanhado da sua maldita arma, a tenebrosa régua, e colou a cara à do rapaz, insultando-o. Até aqui, nada de novo, o pior foi quando lhe disse: - Mas, tu estás bêbado! Cheiras a aguardente! E vai dai dá-lhe um valente pontapé no traseiro. O Afonso nem um ai disse. Dobrou-se em dois e acabou por estatelar-se no chão sem conseguir soerguer-se. O professor olhou para a turma, encolerizado, e gritou: - Todos lá para fora! Vão fazer um intervalo! E fomos mais cedo que o habitual.
Fiquei a saber que o pequeno-almoço do Afonso tinha sido aguardente. Sabia que os mais velhos bebiam copos logo de madrugada antes de arreigarem ao trabalho, mas crianças não sabia. Era comum, sempre que íamos a casa de algumas pessoas, beber um "refresco" feito de água, vinho e açúcar. Confesso que não desgostava! Mas aguardente não nos davam.
Muitos anos mais tarde, tive de apanhar o comboio, o “rápido” das sete, para Coimbra. A estação estava apinhada de muitas pessoas, entre os quais soldados que iam para os seus quartéis. Era Domingo. O comboio chegou e corremos para as carruagens para ver se conseguíamos um lugar sentado. Qual quê! Tive que ir em pé como era habitual. Ainda fui às carruagens da frente, mas nada. Olho pela janela da porta e vejo um soldado deitado no chão. Agitado, vomitado, totalmente descomposto, convulsivo, como se de um epiléptico se tratasse, sem ninguém ao redor. Como o comboio tardava em começar a marcha, tive tempo mais do que suficiente para analisar tão desconfortante situação. Quem seria aquele jovem? Depressa vi que era o Afonso. - O Afonso! Bêbado que nem um cacho, deitado na gare de uma estação. Aquela imagem colou-se de tal forma na retina que nem reparei que o comboio já ia a caminho. Durante toda a viagem não pensei noutra coisa. O que é lhe iria acontecer? Provavelmente não iria durar muitos anos e sabe-se lá com que sofrimento para si e familiares.
Muitos anos mais tarde, numa tarde de campanha eleitoral para as autárquicas, calcorreei várias aldeias e lugarejos do meu concelho. Numa das tardes, de repente, chamou-me a atenção um senhor aparentando meia idade, com pouco cabelo, vestido com um fato escuro, aspecto limpo, mas com um semblante grave, digno, a fazer lembrar uma personagem tipo pastor de uma qualquer igreja protestante. Cruzámo-nos, cumprimentou-me com uma delicada saudação de “boas-tardes”, à qual respondi e, mais à frente, perguntei ao meu amigo de infância, que me acompanhava na campanha: - Olha lá, o que foi feito do Afonso "Caporro"? Ele vivia por estas bandas. E recordei-me de muito episódios do passado. Foi então que ouvi uma gargalhada. - O Afonso?! Então ainda agora acabaste de cruzar com ele. - Quem? Aquele senhor era o Caporro? Mas ele bebia que nem um desalmado, desde os bancos da escola! - Pois foi, mas desistiu. Tornou-se, há alguns anos, numa pessoa respeitável, faz a sua vidinha, tem uma família composta e nunca mais tocou numa gota de álcool.
Quando acabou de me dizer isto senti uma sensação de felicidade e, sobretudo, um grande alívio...
O fenómeno do alcoolismo é muito antigo e a sua faceta juvenil também.
Quando andava na escola, os bêbados abundavam em qualquer lugar. Ao fim da manhã e princípio da tarde já eram visíveis alguns ébrios antevendo o festival dos fins de tarde e noites.
Marcou-me uma cena ocorrida numa manhã, particularmente fria de Inverno, na minha escola primária. Devia andar na segunda classe. O professor chamou o Afonso, "Caporro" de apodo, para ir ao quadro. De calções e alpergatas, a tiritar de frio, o "Caporro" lá se arrastou. O professor mandou-lhe montar uma conta simples, e com o giz tentou escrever algo, mas não conseguiu. Apoiava-se com o ombro esquerdo no quadro e face voltada em sentido contrário à secretária. O mestre escola, baixo, careca, e meio obeso, saltou com uma agilidade felina, acompanhado da sua maldita arma, a tenebrosa régua, e colou a cara à do rapaz, insultando-o. Até aqui, nada de novo, o pior foi quando lhe disse: - Mas, tu estás bêbado! Cheiras a aguardente! E vai dai dá-lhe um valente pontapé no traseiro. O Afonso nem um ai disse. Dobrou-se em dois e acabou por estatelar-se no chão sem conseguir soerguer-se. O professor olhou para a turma, encolerizado, e gritou: - Todos lá para fora! Vão fazer um intervalo! E fomos mais cedo que o habitual.
Fiquei a saber que o pequeno-almoço do Afonso tinha sido aguardente. Sabia que os mais velhos bebiam copos logo de madrugada antes de arreigarem ao trabalho, mas crianças não sabia. Era comum, sempre que íamos a casa de algumas pessoas, beber um "refresco" feito de água, vinho e açúcar. Confesso que não desgostava! Mas aguardente não nos davam.
Muitos anos mais tarde, tive de apanhar o comboio, o “rápido” das sete, para Coimbra. A estação estava apinhada de muitas pessoas, entre os quais soldados que iam para os seus quartéis. Era Domingo. O comboio chegou e corremos para as carruagens para ver se conseguíamos um lugar sentado. Qual quê! Tive que ir em pé como era habitual. Ainda fui às carruagens da frente, mas nada. Olho pela janela da porta e vejo um soldado deitado no chão. Agitado, vomitado, totalmente descomposto, convulsivo, como se de um epiléptico se tratasse, sem ninguém ao redor. Como o comboio tardava em começar a marcha, tive tempo mais do que suficiente para analisar tão desconfortante situação. Quem seria aquele jovem? Depressa vi que era o Afonso. - O Afonso! Bêbado que nem um cacho, deitado na gare de uma estação. Aquela imagem colou-se de tal forma na retina que nem reparei que o comboio já ia a caminho. Durante toda a viagem não pensei noutra coisa. O que é lhe iria acontecer? Provavelmente não iria durar muitos anos e sabe-se lá com que sofrimento para si e familiares.
Muitos anos mais tarde, numa tarde de campanha eleitoral para as autárquicas, calcorreei várias aldeias e lugarejos do meu concelho. Numa das tardes, de repente, chamou-me a atenção um senhor aparentando meia idade, com pouco cabelo, vestido com um fato escuro, aspecto limpo, mas com um semblante grave, digno, a fazer lembrar uma personagem tipo pastor de uma qualquer igreja protestante. Cruzámo-nos, cumprimentou-me com uma delicada saudação de “boas-tardes”, à qual respondi e, mais à frente, perguntei ao meu amigo de infância, que me acompanhava na campanha: - Olha lá, o que foi feito do Afonso "Caporro"? Ele vivia por estas bandas. E recordei-me de muito episódios do passado. Foi então que ouvi uma gargalhada. - O Afonso?! Então ainda agora acabaste de cruzar com ele. - Quem? Aquele senhor era o Caporro? Mas ele bebia que nem um desalmado, desde os bancos da escola! - Pois foi, mas desistiu. Tornou-se, há alguns anos, numa pessoa respeitável, faz a sua vidinha, tem uma família composta e nunca mais tocou numa gota de álcool.
Quando acabou de me dizer isto senti uma sensação de felicidade e, sobretudo, um grande alívio...
Bonita história, ainda por cima com final feliz!...
ResponderEliminarBelo episódio literário por que o felicito, ao mesmo tempo que me interrogo sobre o que teria determinado tão surpreendente regeneração. Acaso esta pequena, mas interessante, narrativa virá a ter sequência ? Seria, certamente para muitos, prazer redobrado.
ResponderEliminarCom uma história tão pesada, realmente deve ter acontecido alguma coisa para o tirar do abismo. Mas, apesar do final feliz, a juventude já ninguém lha devolveu!Cá ficamos à espera de saber, como diz António Viriato, é uma belo pretexto para mais um excelento naco de prosa...
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