Primeiro aparecia o boné preto, depois o tronco curvado em ângulo recto sobre o guiador, depois a velha bicicleta de rodas enormes, ferrugenta e desengonçada, parecia um milagre como é que aquele velhote conseguia pedalar pela rua acima. Passava à minha porta e, se me via no jardim, fazia um aceno largo, um pouco tímido a princípio, depois francamente amistoso.
Até que um dia o vejo vir a pé, lentamente, todo curvado como de costume, e esperei para o cumprimento habitual. Parou, cerimonioso, mas com um sorriso desdentado que fazia lembrar uma criança. As costas estavam fixas naquele dobrar desumano, condenado a levantar os olhos sem que a cabeça pudesse acompanhar, e estendeu-me a mão, uma manápula grande e forte como um remo, muito deformada, testemunho nítido de uma vida dura de trabalhos no campo, a domar a terra para lhe tirar algum sustento.
- “Vou à missa” – disse, num articular que mais adivinhei do que entendi –“ já não posso com a bicicleta, agora vou a pé” e ficou parado, a olhar, ora para mim ora para o meu jardim, disse “isto está bonito” e seguiu sem esperar resposta.
Um dia em que ele passou, estava eu a entrar no carro e perguntei se queria boleia para a vila. Ficou a olhar, como se não compreendesse, fiz-lhe sinal para entrar e abriu-se num sorriso nos olhos e na boca de criança velha. Foi aí que percebi a sua surdez profunda, também por isso articulava mal as palavras, era mais uma imitação de sons do que falar. Fez de propósito para sair na vila à frente de toda a gente, quem havia de dizer, ele a sair de um carro daqueles, desde que a bicicleta se tornou um peso impossível ia os 3 km a pé, os transportes estão muito caros.
Passei a dar-lhe boleia sempre que o vejo na estrada, vai sempre à missa, onde houver, e às procissões dos arredores, mas quer sempre ficar no centro da vila, onde o vejam chegar.
No último domingo eu ia com outra pessoa, visita habitual da minha casa, vi-o ao longe, com o andar curvo e arrastado, e ia desviar para o apanhar no caminho, para a boleia do costume.
Quando expliquei o que ia fazer, ouvi um comentário seco, impaciente, “que ideia essa, o homem vai todos os dias a pé, que diferença é que lhe faz ir hoje também? Vamos mas é embora…!”
Fiquei a ver a silhueta penosa a tornar-se cada vez mais pequenina, a cara virada para o chão, a não o deixar ver que passei sem lhe ligar, que diferença fazia, mais dia, menos dia, o mundo não melhora por isso, pois não?
Foi nesse dia que li no jornal uma crítica ao alarido à volta da menina desaparecida no Algarve, que há milhares de crianças que desaparecem na Europa, que há mesmo muitas em Portugal, que essas, coitadas, para essas ninguém faz barulho.
É verdade. Mas se, por qualquer motivo, foi possível fazer isso por esta, aqui e agora, porque não havia de ser feito? O facto de não conseguirmos mudar tudo, dispensa-nos de tentar o mínimo que podemos dar?
É triste ficar a ver silhuetas, como se os mundos não se pudessem tocar, como se não nos reconhecêssemos num desses recortes imateriais a quem sucede uma desgraça, ou cuja mão grossa e calejada não cabe num aperto de mão.
Até que um dia o vejo vir a pé, lentamente, todo curvado como de costume, e esperei para o cumprimento habitual. Parou, cerimonioso, mas com um sorriso desdentado que fazia lembrar uma criança. As costas estavam fixas naquele dobrar desumano, condenado a levantar os olhos sem que a cabeça pudesse acompanhar, e estendeu-me a mão, uma manápula grande e forte como um remo, muito deformada, testemunho nítido de uma vida dura de trabalhos no campo, a domar a terra para lhe tirar algum sustento.
- “Vou à missa” – disse, num articular que mais adivinhei do que entendi –“ já não posso com a bicicleta, agora vou a pé” e ficou parado, a olhar, ora para mim ora para o meu jardim, disse “isto está bonito” e seguiu sem esperar resposta.
Um dia em que ele passou, estava eu a entrar no carro e perguntei se queria boleia para a vila. Ficou a olhar, como se não compreendesse, fiz-lhe sinal para entrar e abriu-se num sorriso nos olhos e na boca de criança velha. Foi aí que percebi a sua surdez profunda, também por isso articulava mal as palavras, era mais uma imitação de sons do que falar. Fez de propósito para sair na vila à frente de toda a gente, quem havia de dizer, ele a sair de um carro daqueles, desde que a bicicleta se tornou um peso impossível ia os 3 km a pé, os transportes estão muito caros.
Passei a dar-lhe boleia sempre que o vejo na estrada, vai sempre à missa, onde houver, e às procissões dos arredores, mas quer sempre ficar no centro da vila, onde o vejam chegar.
No último domingo eu ia com outra pessoa, visita habitual da minha casa, vi-o ao longe, com o andar curvo e arrastado, e ia desviar para o apanhar no caminho, para a boleia do costume.
Quando expliquei o que ia fazer, ouvi um comentário seco, impaciente, “que ideia essa, o homem vai todos os dias a pé, que diferença é que lhe faz ir hoje também? Vamos mas é embora…!”
Fiquei a ver a silhueta penosa a tornar-se cada vez mais pequenina, a cara virada para o chão, a não o deixar ver que passei sem lhe ligar, que diferença fazia, mais dia, menos dia, o mundo não melhora por isso, pois não?
Foi nesse dia que li no jornal uma crítica ao alarido à volta da menina desaparecida no Algarve, que há milhares de crianças que desaparecem na Europa, que há mesmo muitas em Portugal, que essas, coitadas, para essas ninguém faz barulho.
É verdade. Mas se, por qualquer motivo, foi possível fazer isso por esta, aqui e agora, porque não havia de ser feito? O facto de não conseguirmos mudar tudo, dispensa-nos de tentar o mínimo que podemos dar?
É triste ficar a ver silhuetas, como se os mundos não se pudessem tocar, como se não nos reconhecêssemos num desses recortes imateriais a quem sucede uma desgraça, ou cuja mão grossa e calejada não cabe num aperto de mão.
Ao contrário do que muitos, quiçá como a sua visita nesse Domingo, nos fazem crer a verdade é que afinal um indíviduo pode fazer a diferença... é preciso é que o queira...
ResponderEliminarO problema é que a maioria dos indíviduos não quer fazer a diferença, muito provavelmente porque não ganha nada com isso... Ou se calhar até ganha... o rótulo de "otário" porque "parou para ajudar os outros" por mais insignificantes que nos possam parecer!
Ao vivermos voltados para o nosso umbigo como fazemos esquecemos que como individuos podemos fazer a diferença, por mais pequena que seja... e se todos fizessem essa diferença então este seria um mundo melhor. O problema reside no facto de que quem fôr apanhado a olhar para o umbigo dos outros ser marginalizado como se fosse um pária, pois não está só preocupado consigo e com os seus...
Caro virus, não sei se será da idade, mas cada vez me convenço mais de que temos que fazer o que achamos bem, independentemente do que os outros possam pensar ou dos "rótulos" que possa merecer. O mesmo se diga de agirmos contrariados, se no íntimo consideramos que está mal, então o melhor é ficarmos quietos. Quanto à opinião dos outros, é como a história do Velho, do Rapaz e do Burro, há sempre alguém que critica,ou porque se fez, ou porque se deixou de fazer, ou porque se fez mal, ou assim assim, há gostos para tudo, só mesmo os que nunca fazem coisa nenhuma é que não suscitam comentários, mas esses, coitados, já não têm existência própria, mesmo que não tenham dado por isso.
ResponderEliminarFaz-me sempre bem lê-la, Suzana.
ResponderEliminar"Quando expliquei o que ia fazer, ouvi um comentário seco, impaciente, “que ideia essa, o homem vai todos os dias a pé, que diferença é que lhe faz ir hoje também? Vamos mas é embora…!”
ResponderEliminarFiquei a ver a silhueta penosa a tornar-se cada vez mais pequenina, a cara virada para o chão, a não o deixar ver que passei sem lhe ligar, que diferença fazia, mais dia, menos dia, o mundo não melhora por isso, pois não?"
Melhora sim cara Suzana, acredite que melhora. Melhoraria o seu mundo, na "pessoa" do seu amor-próprio, se resistisse à opinião do seu amigo, fortificando a sua. Melhoraria o mundo do seu amigo desdentado-mouco, dono daquele sorriso infantil num corpo curvado que a fizeram meditar sobre a realidade de uma vida penosa e a fizeram sentir-se mais humana.
O conto que escreve é belíssimo, sem o final feliz que se (eu) desejaria, mas sóbrio, na medida em que descreve uma realidade.
Perfeitamente de acordo com o «tio» Bartolomeu. E já viu bem? Um momento só teria bastado para melhorar o mundo de duas pessoas, há alguma coisa melhor do que isso?
ResponderEliminarOlhem a minha nuvenzinha piroclástica a dissipar-se... :)))
O meu «sobrinho» tem dentro de si um vulcão em plena actividade?!
ResponderEliminarAos 35 anos de idade, com as consequentes ideias fervilhantes, é bom que essas explosões aconteçam e que o magma resultante se espalhe.
:)
Pois, é no que dá fazer cerimónia com as visitas...
ResponderEliminarBrinquem, brinquem... Essas explosões são tramadas, além de que levam tudo à frente (mesmo o que não devem). :)) Isso é que é o Diabo.
ResponderEliminarDe qualquer maneira, a história da amiga Suzana animou-me o dia e isso é bom.
Desta vez sou eu no papel dee quem elogia, belo post cara Susazana.
ResponderEliminarEste é mesmo dos bons, daqueles mesmo bons, para fazer dissipar a nuvem do Anthrax ... é obra.
Só não concordo duas vezes com o caro Bartolomeu na sua frase "sem o final feliz", primeiro pelo que leio da cara Suzana esta história não ficará este final, quanto muito foi um interlúdio; segundo não foi feliz, sempre que alguém pensa algo foi criado e acredito que muitos de nós aprenderam uma lição.
O que eu gosto desta vida é que nos dá sempre uma segunda oportunidade de fazer o bem.
Quanto à história do velho, do rapaz e do burro, deixo esta frase de Abraham Lincoln, "quando faço o bem sinto-me bem, quando faço o mal sinto-me mal, esta é a minha religião, a minha filosofia de vida"
Acho que é cientifico, os post deste blog sofrem com a meteorologia ... sempre que chove, a melancolia rega as palavras e os sentimentos.
Cara Suzana,
ResponderEliminarQue belo trecho aqui nos deixou.
Estava a lê-lo e a lembrar-me de tantas silhuetas humanas, mais ou menos curvadas pela erosão do tempo, que vamos fixando e perdendo de vista ao longo da vida.
E tantas vezes com a mágoa distante e nostálgica de não termos sido mais humanos ou mais atentos...porque não tivemos o tempo ou a coragem para lhes dar a atenção que sem pedir... nos pediam.
Suzana
ResponderEliminarÉ uma história cheia de ternura. A sua generosidade em ajudar esse pobre velhote corcunda, de fraca condição física e económica, simpático, modesto e respeitador não muda o mundo mas torna o mundo melhor.
A vida para quem dá e para quem recebe fica mais rica. Se todos ajudarmos alguns, o mundo poderá ser melhor. Virar as costas àqueles que nada nos pedem, mas a quem pudemos tornar a vida mais leve, é uma atitude profundamente egoísta.
Estou há muito convencida que devemos fazer o que achamos bem, mesmo que os outros não concordem. Não fazer é muitas vezes uma violência porque nos sentimos contrariados. Não compensa...