Volta e não volta sou confrontado com pedidos de ajuda por parte de algumas pessoas que se sentem prejudicadas pelas radiações electromagnéticas. As razões prendem-se com pareceres que já tive oportunidade de elaborar e, até, de um projecto de resolução apresentado sobre o assunto na anterior legislatura.
Os efeitos na saúde têm sido objecto de vários relatórios, uns apontando para efeitos perniciosos, outros nem por isso. De qualquer modo existe evidência de algum perigo, nomeadamente nas crianças, caso de um ligeiro risco acrescido de certas formas de leucemia, por exemplo.
A polémica tem os seus altos e baixos. Veja-se o caso recente de terem sido apontadas como responsáveis pelo estranho desaparecimento das abelhas com consequências ecológicas difíceis de quantificar.
Perante esta situação, as atitudes das pessoas poderão classificar-se em quatro grupos: as que não manifestam qualquer interesse ou preocupação, as que tentam estudar o problema e contribuir para a minimização de eventuais impactos, as que negam quaisquer efeitos negativos e um quarto grupo que, embora pequeno, apresenta manifestações comportamentais muito sérias.
A propósito das radiações, e de certos comportamentos, recordei-me de um episódio ocorrido há muitos anos.
Nos meus tempos de estudante o local de trabalho favorito eram os cafés. O meu café de estudo preferido era o Café Sofia, situado na rua com o mesmo nome. Rua central e muito movimentada. Com o tempo acabámos por conhecer muitas pessoas. Uma delas era uma senhora de idade, baixa, meio-obesa, não arranjada, cabelos desgrenhados e que usava invariavelmente um chapéu de chuva fizesse chuva, fizesse sol, fosse dia ou fosse noite. Ao princípio, justifiquei o seu comportamento com algum tipo de cuidado especial, mas, rapidamente, concluí que a senhora não era boa da cabeça. Não incomodava ninguém. Tinha os seus hábitos e um horário certinho, acabando por entrar na sua habitação, instalada num dos velhos colégios da rua, através de umas escadas escuras e íngremes. Era conhecida pela “mulher do chapéu”. Ninguém sabia o seu nome nem nunca lhe tinham ouvido a sua voz.
Passados uns anos, e na qualidade de jovem médico interno, encontrava-me no serviço de urgência dos velhos HUC. A primeira sala, verdadeira sala de choque, era reservada aos mais novos, os quais tinham que fazer a triagem. A noite já ia um pouco avançada, quando de repente entra a “mulher de chapéu” muito agitada e ofegante. Conhecia-a de imediato. Olhando para o seu estado pensei que poderia estar perante um problema respiratório ou cardíaco grave e comecei a interrogá-la nesse sentido. Perguntei-lhe se tinha falta de ar ou dores no peito. Respondeu-me que não. – Mas o que é que a senhora sente? Olhava para todos os lados com um ar muito ansioso mas não respondia. Repeti-lhe mais do que uma vez a pergunta, tentando chamar a atenção, até que me disse, muito baixinho: - São os russos! – São o quê?! – São os russos, senhor doutor! – Andam atrás de mim e lançam radiações sobre a minha cabeça. Querem matar-me!– Mas eu protejo-me. – Mas como é que a senhora se protege? – Com o meu chapéu, claro! Foi então que comecei a deslindar o mistério do chapéu de chuva. – A senhora usa sempre o chapéu de chuva? – Claro! – Mas em casa não o usa, pois não? – Uso pois! Então não sabe que os russos vivem por cima de mim? – Mas a senhora não traz o chapéu! – Pois não, roubaram-mo, e foram os russos! Neste ponto a agitação acentuou-se e o delírio tornou-se mais do que evidente, o que me levou a chamar o psiquiatra de serviço que, muito contrafeito e com a arrogância típica de um sénior incomodado por um novato, lá a levou para a última sala, a do fundo, a da psiquiatria, onde a examinou e fez a terapêutica injectável apropriada à situação. Passado alguma tempo, ao sair, sem abrandar o passo, e sem me olhar, disse-me entre os dentes que a senhora ia dormir umas horas e depois poderia ir para casa. A minha vontade foi mandá-lo à outra banda.
Pela madrugada, felizmente calma, com os colegas a dormirem em posições muito pouco ortodoxas, encontrava-me na sala de entrada, reclinado numa cadeira, sem dormir, porque se dormisse durante a noite, ao acordar sentia um embrutecimento mental que me impedia de raciocinar. Assim, preferia não dormir e manter uma lucidez suficiente, evitando fazer asneiras. Eis que, subitamente, me aparece a “mulher do chapéu” visivelmente mais calma a olhar para mim. – Então, está melhor? Vai para casa? A senhora olhava para a porta, especada e disse-me: - Eu ia, mas... Foi então que tive uma ideia. Como tinha o carro estacionado muito perto da entrada das urgências, levantei-me e fui buscar um chapéu de chuva que guardava sempre no porta-bagagens. Em menos de um minuto ofereci-lhe o meu chapéu. Os olhos dela riram-se e comentou: - Agora sim, estou salva, posso ir para casa. Os malditos russos já não me podem fazer mal! E foi-se embora.
Durante algum tempo, e apesar de já não frequentar o meu café de estudante, ainda tive oportunidade de a ver, algumas vezes, na rua da Sofia com o meu chapéu de chuva.
Os efeitos na saúde têm sido objecto de vários relatórios, uns apontando para efeitos perniciosos, outros nem por isso. De qualquer modo existe evidência de algum perigo, nomeadamente nas crianças, caso de um ligeiro risco acrescido de certas formas de leucemia, por exemplo.
A polémica tem os seus altos e baixos. Veja-se o caso recente de terem sido apontadas como responsáveis pelo estranho desaparecimento das abelhas com consequências ecológicas difíceis de quantificar.
Perante esta situação, as atitudes das pessoas poderão classificar-se em quatro grupos: as que não manifestam qualquer interesse ou preocupação, as que tentam estudar o problema e contribuir para a minimização de eventuais impactos, as que negam quaisquer efeitos negativos e um quarto grupo que, embora pequeno, apresenta manifestações comportamentais muito sérias.
A propósito das radiações, e de certos comportamentos, recordei-me de um episódio ocorrido há muitos anos.
Nos meus tempos de estudante o local de trabalho favorito eram os cafés. O meu café de estudo preferido era o Café Sofia, situado na rua com o mesmo nome. Rua central e muito movimentada. Com o tempo acabámos por conhecer muitas pessoas. Uma delas era uma senhora de idade, baixa, meio-obesa, não arranjada, cabelos desgrenhados e que usava invariavelmente um chapéu de chuva fizesse chuva, fizesse sol, fosse dia ou fosse noite. Ao princípio, justifiquei o seu comportamento com algum tipo de cuidado especial, mas, rapidamente, concluí que a senhora não era boa da cabeça. Não incomodava ninguém. Tinha os seus hábitos e um horário certinho, acabando por entrar na sua habitação, instalada num dos velhos colégios da rua, através de umas escadas escuras e íngremes. Era conhecida pela “mulher do chapéu”. Ninguém sabia o seu nome nem nunca lhe tinham ouvido a sua voz.
Passados uns anos, e na qualidade de jovem médico interno, encontrava-me no serviço de urgência dos velhos HUC. A primeira sala, verdadeira sala de choque, era reservada aos mais novos, os quais tinham que fazer a triagem. A noite já ia um pouco avançada, quando de repente entra a “mulher de chapéu” muito agitada e ofegante. Conhecia-a de imediato. Olhando para o seu estado pensei que poderia estar perante um problema respiratório ou cardíaco grave e comecei a interrogá-la nesse sentido. Perguntei-lhe se tinha falta de ar ou dores no peito. Respondeu-me que não. – Mas o que é que a senhora sente? Olhava para todos os lados com um ar muito ansioso mas não respondia. Repeti-lhe mais do que uma vez a pergunta, tentando chamar a atenção, até que me disse, muito baixinho: - São os russos! – São o quê?! – São os russos, senhor doutor! – Andam atrás de mim e lançam radiações sobre a minha cabeça. Querem matar-me!– Mas eu protejo-me. – Mas como é que a senhora se protege? – Com o meu chapéu, claro! Foi então que comecei a deslindar o mistério do chapéu de chuva. – A senhora usa sempre o chapéu de chuva? – Claro! – Mas em casa não o usa, pois não? – Uso pois! Então não sabe que os russos vivem por cima de mim? – Mas a senhora não traz o chapéu! – Pois não, roubaram-mo, e foram os russos! Neste ponto a agitação acentuou-se e o delírio tornou-se mais do que evidente, o que me levou a chamar o psiquiatra de serviço que, muito contrafeito e com a arrogância típica de um sénior incomodado por um novato, lá a levou para a última sala, a do fundo, a da psiquiatria, onde a examinou e fez a terapêutica injectável apropriada à situação. Passado alguma tempo, ao sair, sem abrandar o passo, e sem me olhar, disse-me entre os dentes que a senhora ia dormir umas horas e depois poderia ir para casa. A minha vontade foi mandá-lo à outra banda.
Pela madrugada, felizmente calma, com os colegas a dormirem em posições muito pouco ortodoxas, encontrava-me na sala de entrada, reclinado numa cadeira, sem dormir, porque se dormisse durante a noite, ao acordar sentia um embrutecimento mental que me impedia de raciocinar. Assim, preferia não dormir e manter uma lucidez suficiente, evitando fazer asneiras. Eis que, subitamente, me aparece a “mulher do chapéu” visivelmente mais calma a olhar para mim. – Então, está melhor? Vai para casa? A senhora olhava para a porta, especada e disse-me: - Eu ia, mas... Foi então que tive uma ideia. Como tinha o carro estacionado muito perto da entrada das urgências, levantei-me e fui buscar um chapéu de chuva que guardava sempre no porta-bagagens. Em menos de um minuto ofereci-lhe o meu chapéu. Os olhos dela riram-se e comentou: - Agora sim, estou salva, posso ir para casa. Os malditos russos já não me podem fazer mal! E foi-se embora.
Durante algum tempo, e apesar de já não frequentar o meu café de estudante, ainda tive oportunidade de a ver, algumas vezes, na rua da Sofia com o meu chapéu de chuva.
Sou um leitor ávido dos textos do Prof. Massano e confesso que já me fazia falta lê-lo. Por razões que aqui não posso expor, achei particularmente delicioso este seu texto.
ResponderEliminarBelo reaparecimento!...
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarJá tinha saudades de o ler.
A mulher do chapéu-de-chuva não era mesmo boa da cabeça. O hospital não a curou da sua grande pancada, mas salvou-a, pela mão de um médico que conhecia bem a sua patologia, das malvadas radiações russas!
Sempre me disseram, e tenho ouvido várias, que os médicos têm muitas histórias engraçadas para contar. Felizmente, que assim é, se não a vida nos hospitais era bem mais complicada, não era?
Caro amigo eu tambem tentaria fazer algo semelhante, parabens pela sua decisao!
ResponderEliminarSaudacoes d'Algodres.
bonito e ternurento texto.
ResponderEliminarSe outra conclusão não fosse possível retirar desta delicada história, poderiamos tropeçar nesta: Devido a um diagnóstico heremético, fundamentado exclusivamente nos conhecimentos empíricos, custou aquela "doente" ao erário público uma verba que seria escusada. Dizia o prof. Agostinho da Silva que a mente humana tem a capacidade de alterar o mundo, conforme a sua vontade. Seria tão descabido pensar que aquela mulher se sentia efectiva e particularmente afectada por radiações?
ResponderEliminarSe pensarmos que certas pessoas são mais sensíveis a fenómenos meteorológicos (para não falar dos extra-sensoriais) que outras, conseguindo prever alterações climatéricas, devido a dores nas articulações... talvez possamos, minimamente aceitar que os medos da senhora do chapéu, pudessem ter algum fundamento.
A ciência ainda tem um longo caminho por descobrir no campo sensorial.
Um grande abraço a todos e obrigado....
ResponderEliminarQue bela história. E que sorte a da senhora em encontrar um médico assim. A ciência manifesta-se de muitas maneiras,o Prof. Massano já nos ensinou isso aqui muitas vezes, partilhando connosco a sua fantástica maneira de ver o mundo e compreender a alma das pessoas (ou a mente, de preferência)
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