Uma doente minha, de idade, verdadeiro símbolo da simplicidade humana, entrou no meu consultório com a sua mão a empunhar o lenço com o qual limpa a saliva, que permanentemente escorre de uma boca desdentada, e a chorar. É comum entrar assim. Habitualmente vem sempre acompanhada do filho, também ele um simplório a raiar a idiotia, que a mãe carinhosamente reconhece. "Nasceu assim"! Diz, volta e não volta.
As queixas e a profunda tristeza são, invariavelmente, devidas ao marido que, desde que a catrapiscou, foi sempre um torturador. Levou-a para Angola, fez-lhe os filhos, chegando a dizer que não eram dele, mas sim dos pretos, “como se isso fosse possível, porque eram brancos” justificava. A violência com que foi presenteada ao longo da sua existência é indescritível. Mesmo agora, o marido dividiu a casa, proibindo-a de entrar na sua parte, cortando sempre que lhe apetece a água e a luz, além de ameaças de morte a ambos, mãe e filho. Pensei que desta vez tivesse ocorrido mais uma do estilo. Mas não. Agora foi pior. Reparei que vinha de preto e que não trazia na outra mão, com a qual empunhava a bengala, o tradicional raminho de alecrim.
Há muitos anos fiz-lhe uma pequena observação sobre o ramito e explicou-me que era para dar cheiro. - Quer ver Sr. Doutor? É assim: esfregou o ramo entre as mãos, passando-as depois pelo pescoço e cara. Ao dar esta explicação, com uma voz muito fina e difícil de entender, agravada pela falta de dentes, riu-se muito envergonhada. Uma das raras vezes que a vi sorrir. A partir de então, quando abandonava a consulta, deixava em cima da secretária um raminho de alecrim!
De preto, a chorar, sem o alecrim e sem o filho, perguntei o que se tinha passado. Demorei um pouco a perceber que o filho tinha falecido há três semanas. - Morreu?! Mas como? Explicou-me que o filho tinha entrado na cozinha e que caiu. Foi ver o que se passava e ao tentar levantá-lo viu que não bulia. Estava morto.
- Foi do coração não foi Sr. Doutor? - Deve ter sido, claro. Mas ele andava doente? - Não! Andava bem!
Quando vinha com a mãe à consulta, sentava-se, permanecendo calado durante todo o tempo. Muitas vezes tive que o interpelar, porque o seu silêncio era confrangedor. Consegui retirar meia dúzia de frases! No entanto, ajudava a mãe mesmo com as suas limitações. O pai maltratava-o constantemente, ameaçando de múltiplas maneiras. A mãe dizia que o seu filhinho sofria muito com o comportamento do pai, desde que nasceu há 53 anos. Ainda antes de morrer o ameaçou de morte, porque lhe atribuía o desvio da água do depósito durante a noite.
Sempre num tom desolador ouvi atentamente o seu relato e queixas.
Já lá tinha um no cemitério. Este é o segundo. O primeiro morreu de cancro do estômago aos 26 anos e drogava-se. “Nessa altura quis que eu fugisse para a África do Sul por causa do pai. Mas viemos na onda dos retornados”. Perguntei-lhe se o pai foi ao funeral. Disse que sim, mas não devia ter ido. - Sabe o que ele me disse ontem? Que afinal não é o filho que desvia a água do depósito, porque estava morto! – Sabe, ele esquece-se de ligar o botão do motor do poço!
A conversa foi-se desenrolando, sempre ao redor de muitas cenas e acontecimentos desagradáveis, até que se foi embora. Ajudei-a a descer as escadas, convicto de que muito provavelmente não terei mais acesso ao raminho de alecrim que, discretamente, “esquecia” em cima da minha secretária.
Diz o povo que cada um sabe de si e que Deus sabe de todos. Pode ser que seja, o que é certo é que eu também sei de alguns...
As queixas e a profunda tristeza são, invariavelmente, devidas ao marido que, desde que a catrapiscou, foi sempre um torturador. Levou-a para Angola, fez-lhe os filhos, chegando a dizer que não eram dele, mas sim dos pretos, “como se isso fosse possível, porque eram brancos” justificava. A violência com que foi presenteada ao longo da sua existência é indescritível. Mesmo agora, o marido dividiu a casa, proibindo-a de entrar na sua parte, cortando sempre que lhe apetece a água e a luz, além de ameaças de morte a ambos, mãe e filho. Pensei que desta vez tivesse ocorrido mais uma do estilo. Mas não. Agora foi pior. Reparei que vinha de preto e que não trazia na outra mão, com a qual empunhava a bengala, o tradicional raminho de alecrim.
Há muitos anos fiz-lhe uma pequena observação sobre o ramito e explicou-me que era para dar cheiro. - Quer ver Sr. Doutor? É assim: esfregou o ramo entre as mãos, passando-as depois pelo pescoço e cara. Ao dar esta explicação, com uma voz muito fina e difícil de entender, agravada pela falta de dentes, riu-se muito envergonhada. Uma das raras vezes que a vi sorrir. A partir de então, quando abandonava a consulta, deixava em cima da secretária um raminho de alecrim!
De preto, a chorar, sem o alecrim e sem o filho, perguntei o que se tinha passado. Demorei um pouco a perceber que o filho tinha falecido há três semanas. - Morreu?! Mas como? Explicou-me que o filho tinha entrado na cozinha e que caiu. Foi ver o que se passava e ao tentar levantá-lo viu que não bulia. Estava morto.
- Foi do coração não foi Sr. Doutor? - Deve ter sido, claro. Mas ele andava doente? - Não! Andava bem!
Quando vinha com a mãe à consulta, sentava-se, permanecendo calado durante todo o tempo. Muitas vezes tive que o interpelar, porque o seu silêncio era confrangedor. Consegui retirar meia dúzia de frases! No entanto, ajudava a mãe mesmo com as suas limitações. O pai maltratava-o constantemente, ameaçando de múltiplas maneiras. A mãe dizia que o seu filhinho sofria muito com o comportamento do pai, desde que nasceu há 53 anos. Ainda antes de morrer o ameaçou de morte, porque lhe atribuía o desvio da água do depósito durante a noite.
Sempre num tom desolador ouvi atentamente o seu relato e queixas.
Já lá tinha um no cemitério. Este é o segundo. O primeiro morreu de cancro do estômago aos 26 anos e drogava-se. “Nessa altura quis que eu fugisse para a África do Sul por causa do pai. Mas viemos na onda dos retornados”. Perguntei-lhe se o pai foi ao funeral. Disse que sim, mas não devia ter ido. - Sabe o que ele me disse ontem? Que afinal não é o filho que desvia a água do depósito, porque estava morto! – Sabe, ele esquece-se de ligar o botão do motor do poço!
A conversa foi-se desenrolando, sempre ao redor de muitas cenas e acontecimentos desagradáveis, até que se foi embora. Ajudei-a a descer as escadas, convicto de que muito provavelmente não terei mais acesso ao raminho de alecrim que, discretamente, “esquecia” em cima da minha secretária.
Diz o povo que cada um sabe de si e que Deus sabe de todos. Pode ser que seja, o que é certo é que eu também sei de alguns...
É incrível o que uma pessoa pode aguentar na sua vida!E, mesmo tendo muito pouco, ainda isso perdeu, é realmente uma história muito comovente, até pela gratidão por uma migalha de atenção que ela retribuia com o raminho de alecrim, se calhar nem a essa atenção ela se achava com direito.
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarA sua doente voltará para lhe deixar um “raminho de alecrim”…
A ida ao médico para muita gente é um escape à rotina da vida, é uma possibilidade de contar a alguém importante e de confiança a sua história particular, os seus problemas, os acontecimentos familiares, as amarguras e tristezas.
São histórias muito tocantes que não deixam ninguém indiferente. Escondem vidas muito difíceis e cheias de dificuldades de toda a natureza. Envolvem normalmente pessoas simples e humildes que aceitam o destino como se o tivessem escolhido. A sua capacidade de aceitação é inversamente proporcional à sua capacidade de mudança. Habituam-se ao que o destino lhes determinou e não equacionam que pudesse ser de maneira diferente. Resignam-se.
Temos por vezes a leviandade de pensar como será possível!
(Levou-a para Angola, fez-lhe os filhos, chegando a dizer que não eram dele, mas sim dos pretos, “como se isso fosse possível, porque eram brancos” justificava.)
ResponderEliminarFoi nesta phrase que aminha atenção se prendeu.
A historia maravilhosamente contada pelo Senhor Professor, tem como protagonistas, um casal, 2 philhos,um ramo de alecrim, 1 deposito de água, 1 poço e um motor electrico que não funciona, se não lhe for premido um certo botão. A família descrita, passou toda a existÊncia subjugada à prepotÊncia daquele que por tradição deveria protegê-la, apoia-la e defendÊ-la. Deu-se o contrário, talvez devido a desacertos de personalidade, incapacidade de gerir emoções, sujeição a padrões de comportamento instituídos, observados cegamente. Poderão ser inumeráveis as causas.
Aquilo que mais me constrange e que me parece comum a casais de diferentes condições intelectuais e sociais, é precisamente a necessidade assumida de justificar aquilo que obviamente, não precisa de justificação e que povoa a imaginação, não fazendo por isso parte da realidade.
Porém, tal como o Caro Professor refere no início do texto, a simplicidade da Senhora, reflecte-se na justificação que assinalei: Os filhos gerados, não tinham progenitores pretos... porque eram brancos (e não, porque não tivera as necessárias relações sexuais, com alguem daquela raça)!!! Mais simples que isto... somente um teste de ADN
Bem esta é a semana dos Vicentes e das Marias Palmiras ... Quando um bom contador de histórias, se dedica a um relato infeliz, o resultado só pode ser sermos obrigados a pensar. Exactamente a mesma situação que o Rilhafoles.
ResponderEliminarEu fiquei apaixonado pela sra, a descrição transborda humanidade e confesso que nunca mais vou olhar para o Alecrim da mesma forma.
Deixando ela o Alecrim, acho que ela está a mostrar que desistiu da vida.
A pobreza de espírito e a a violência psicológica são ainda males de muita gente.
Gostava de encontar esta sra para lhe dar um ramilho de Alecrim.
A humanidade tem tudo para ser feliz, mas impressionante como as coisas degeneram ...
Sr, Prof. Massano
ResponderEliminarJá sei que não me vai responder, mas continuo sem perceber o seu interesse, deve ser a minha condição de inferioridade intelectual e social.
Caro Chevalier
ResponderEliminarNão o conheço. Não sou dado a qualquer tipo de superioridade. As suas interpelações causam-me alguma estranheza. Pode não gostar do que escrevo. Está no seu pleno direito. Acho irrelevante saber quais os meus interesses. Não vejo porque me atribui tanta importância face ao universo de bloguistas.
Respondo-lhe, porque não quero que considere a minha atitude como sendo arrogante. No fundo é sinónimo de respeito pelas pessoas.
Partilho este espaço com os meus amigos. Gosto de escrever ou tenho alguma pretensão. Às tantas não passa mesmo disso: mera pretensão!
Enfim, tenho várias soluções. Continuo a escrever, arranjo uns heterónimos pessoanos, mas da fase adulta, e parto para um blog próprio, ou passo a escrever para mim e para alguns leitores na imprensa regional.
Cumprimentos.
Sr. Professor,
ResponderEliminardesculpe o equívoco.
Vidas tristes que nos fazem pensar...
ResponderEliminarEste livro foi-me oferecido por um amigo (por sinal, o editor).
ResponderEliminarApesar de conhecer 'de ouvido' o autor, confesso que iniciei a leitura com alguma 'descontração' e sem interesse.
Puro engano!!!
Devorei do início ao fim, encantado com a beleza e simplicidade da narrativa.
Na minha modéstia e ignorância (não sou de letras nem versado nessas artes), apenas consigo um simples comentário:
Obrigado.
Leonel Brás