quarta-feira, 8 de agosto de 2007

“Castigos corporais”

Os castigos corporais dados às crianças vão ser alvo de uma campanha tipo tolerância zero, por parte do Conselho da Europa, no próximo Outono. Presentemente, já são proibidos em 16 países, quer em casa quer na escola.
As razões subjacentes a esta iniciativa prendem-se com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, aprovada em 1950, que, no seu artigo 3º, proclama que “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”, e com o facto de não se justificar, de acordo com os diferentes especialistas, como medida “correctora” ou “educacional”. Portugal ratificou a Convenção 38 anos depois.
A violência é uma constante associada desde sempre à natureza animal, mas que no caso do homem se traduziu, e traduz-se, em momentos loucos impróprios de seres com alma! Todos os esforços no sentido de controlar e evitar a violência são de estimular, possibilitando que, no futuro, os nossos descendentes possam viver em sociedades mais felizes.
A supressão dos castigos corporais é um passo que, a concretizar-se, poderá constituir um salto civilizacional muito significativo.
Ao olhar para o passado recordo de actos violentos praticados sobre crianças e adolescentes. Na escola, o castigo corporal era uma constante praticada por muitos professores autoritários, verdadeiros especialistas em “pedagogia da pancada”. Tudo servia, réguas, canas da índia, mãos, pés, mata-borrões - num jogo semelhante ao lançamento do disco - para não falar nos insultos e humilhações. E não era só nas escolas primárias que ocorriam estas medidas. Recordo de duas cenas, ocorridas no meu sétimo ano reveladoras da agressividade dos docentes de então. Numa aula de matemática o professor atirou-se de repente, como se fosse uma pantera, ao meu melhor amigo esmurrando-o e pontapeando-o pelo facto deste não ter conseguido resolver um exercício no quadro. Toda a turma ficou estupefacta perante esta cena. Em seguida, começou a berrar, perguntando quem é que ia resolver o problema. Enquanto os meus colegas se entreolhavam, revelando um terror difícil de escrever, eu sentia uma raiva crescente pelo facto do meu amigo ter sido humilhado. Acto contínuo, levantei-me e dirigi-me para o quadro. Sem dizer uma palavra agarrei no giz e apesar de o ter partido, por duas vezes, resolvi-o. Virei-me ostensivamente para o professor, olhando-o de tal modo que a única resposta que obtive foi um sorriso amarelo, amarelo dos cigarros e amarelo ao aperceber-se do que deveria estar a pensar dele.
A outra cena passou-se com a atarracada e prepotente professora de física que obrigou uma aluna mais alta e, por sinal, muito simpática, a vergar-se para ser esbofeteada. As suas faces ficaram vermelhas, mais da vergonha do que dos tabefes, e as lágrimas irromperam-lhe em esguicho, tudo isto debaixo do sorriso triunfalista da sacaninha autoritária. Tínhamos na altura 17 e 18 anos!
A par desta violência, a praticada pelos pais, ou melhor pelo “pai”, chegava a assumir contornos de brutalidade nauseabunda. Quantas vezes, pela manhã, as crianças apareciam na escola com as faces inchadas, como se tivessem abcessos dentários, olhos semicerrados pelos edemas das pálpebras azuladas, ocultando uma tristeza que todos adivinhávamos.
Num domingo de Verão, ao princípio da tarde, dominado por um calor insuportável, ouvi uma cena de tortura efectuada por um pai a um dos meus amigos. Os berros insultuosos acompanhavam-se dos gritos de dor do jovem e dos sons do cinturão de couro cru a flagelar o seu dorso. Fugi para casa horrorizado acabando por vomitar.
A iniciativa do Conselho da Europa de terminar definitivamente com quaisquer castigos corporais é de louvar. Há, no entanto, reacções instintivas, difíceis de prever, mesmo que sejamos contra estes tipos de castigos. Há muitos anos, a minha filha mais velha, com pouco mais de um ano de idade, testou a eficiência dos seus incisivos bem afiados no meu ombro esquerdo quando a levava ao colo no parque. Já tinha sido picado por uma vespa, mas, garanto que a dor foi em tudo semelhante! Em ambos os casos tive a mesma reacção. A vespa levou uma palmada e a miúda também...

7 comentários:

  1. Caro Professor Massano Cardoso
    Ás crianças inocentes tudo se perdoa. A sua filha quis fazer-lhe uma graça, mais engraçada que a picada de uma vespa. Uma graça para o Pai nunca esquecer. E conseguiu!
    Trata-se de uma iniciativa de louvar que a concretizar-se, e vamos ver como, poderá a prazo conduzir a uma sociedade mais civilizada.
    Crescer num ambiente de violência marca negativamente a formação da personalidade de uma criança. Sem dúvida que esta iniciativa sendo bem sucedida contribuirá para vivermos numa sociedade mais feliz, com benefício em particular para as crianças de hoje!

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  2. A vespa levou uma palmada "esmagadora", a menina, aprendeu que não devia voltar a morder o ombro do pai. É isso caríssimo Professor, a palmada aplicada no tempo certo e com a intensidade apropriada, possui sem dúvida, um carácter didáctico. O que a ultrapassa constitui puro acto de selvajaria.
    Mas... quem possui o caracter que lhe permite bater numa criança selváticamente, dificilmente haverá lei que a consiga emendar.

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  3. ..."ferroadas" terapêuticas para todos, Pai, filha e... vespa!

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  4. http://asvicentinasdebraganza.blogspot.com/2007/08/odor-de-cadver.html#links

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  5. Caro Professor!

    «A violência é uma constante associada desde sempre à natureza animal, mas que no caso do homem se traduziu, e traduz-se, em momentos loucos impróprios de seres com alma!» - Mmmmmmm... não sei se concordo. Afinal de contas, o homem pode até ser um animal político e gregário (já o dizia Aristóteles), mas é, acima de tudo, um animal. Tudo bem que tem a capacidade de controlar os seus instintos mas, ainda assim, é um animal. É a mesma coisa que criar um tigre e tomá-lo por gatinho de estimação. Independentemente de tudo, continua a ser um tigre e mais do que isso, continua a ser um predador porque é essa a sua natureza. É uma natureza que pode ser domada mas, nunca deve ser ignorada.

    Nós para domarmos a nossa natureza, e não nos matarmos uns aos outros (nalguns casos com sucesso), inventámos várias coisas; uma delas foi a moral (diga-se, é uma chatice mas não se pode viver sem ela). Através da moral é possível justificarmos determinados actos, que na natureza seriam normais, dizendo que são "loucos" (até temos um artigo no código civil que nos diz que podemos estar temporariamente insanos), ou que são "impróprios de seres com alma" (eis o cunho da Santa Madre Igreja que os hereges querem estragar permitindo que a Turquia entre na U.E).

    É... sou um pessimista antropológico mas, concordo -na generalidade- com o Conselho da Europa.

    Gostei da palmada na vespa! Foi bem assente.

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  6. Caro Anthrax

    Compreendo perfeitamente onde quer chegar. A este propósito recordo que, em 13 de Novembro de 2005, escrevi um post intitulado “Répteis” que explica muito da “nossa” agressividade. Para não a remeter para esse tempo, transcrevo-o novamente.

    Répteis

    A agressividade comportamental tem sido estudada ao longo dos tempos desde os ratos aos mais sofisticados seres humanos. O filme, “O meu tio da América”, descreve as reacções dos seres humanos em função da complexa estrutura do cérebro. O professor Henry Laborit, médico e biólogo, que documentou a fonte da agressão, descreve-a através de três pessoas vulgares.
    O que leva uma mãe a matar a sua própria filha por uma mera futilidade? O que leva um jovem sacar de uma arma e disparar sobre colegas e professores sem qualquer motivo? O que leva um grupo étnico a exterminar um outro? O que leva um ser humano a transformar-se num bomba viva e provocar a morte de inocentes? O que leva um grupo de jovens a provocar distúrbios de forma gratuita? Enfim, o que leva o ser humano a ser obscenamente agressivo, não obstante toda a aprendizagem efectuada ao longo da sua evolução, culminando na construção, feitura e produção de obras ímpares, cheias de beleza, ricas de significado e transcendência? Tudo tem de passar pelo cérebro humano, ou melhor pelos cérebros. De facto, não podemos esquecer-nos de que ao longo da evolução fomos adoptando e acumulando novas formas e funções. O nosso cérebro mais primitivo é reptiliano. Idêntico aos répteis, que precederam os mamíferos em mais de 200 milhões de anos, é o controlador das funções vitais, tais como o respirar, a frequência cardíaca e os mecanismos de fuga ou de luta. É um cérebro pré-verbal, os seus impulsos são instintivos e ritualistas. Fundamental para a sobrevivência, domínio e acasalamento. As emoções de ódio, amor, medo e contentamento emanam desta parte primitiva. Claro que ao longo dos milhões de anos, outras camadas foram rodeando este núcleo. Deste modo apareceu o segundo cérebro, o dos mamíferos, e com ele começamos a ter aqueles comportamentos que admiramos num cãozinho, ou numa bela cria. Enquanto uma cobra não sente vergonha ou entusiasmo, para um cão ou gato é perfeitamente natural. E, por fim, um terceiro cérebro surge em toda a sua plenitude, o neo-córtex. É através dele que processamos pensamentos abstractos, palavras e símbolos, lógica e tempo.
    A força deste terceiro cérebro, o mais complexo e o mais recente, deverá, ou deveria, controlar os outros dois, sobretudo o mais primitivo, o cérebro reptiliano. No entanto, olhando à nossa volta, podemos observar toda a força e permanente presença do mesmo. Claro que as explicações sociológicas, políticas e religiosas para tantos problemas de agressividade são interessantes e constituem exercícios do tal neo-córtex, muito bem patenteados, como nos últimos acontecimentos verificados em França, só para falar no mais recente. Controlar o primitivo vulcão não é fácil. Regras, condutas, princípios religiosos, legislação, força, e outros métodos humanos têm conseguido manter algum equilíbrio, mas dêem as voltas que derem, nunca conseguirão apagar a força de uma animalidade que é igualmente fonte de tantas conquistas e criatividade. A primeira à espera de se manifestar sempre que pode, a segunda a ser utilizada de forma racional. Daqui a muitos milhões de anos, poderá haver novos “cérebros” a envolverem os já existentes, mas decerto que não irão apagar o primeiro. Se isso acontecer, então, também o homem, tal como o conhecemos, terá desaparecido, e com ele as grandezas e as misérias humanas.


    Ai gostou da palmada que eu dei na vespa?! Hum! Percebi...

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  7. Acertou em cheio! É isso mesmo.

    Sabe, desde que li o Erro de Descartes passei a achar que o cérebro humano é uma coisa fantástica e que, de facto, precisamos dele todo, a funcionar bem, para conservarmos o equilibrio.

    De qualquer forma, não sou fundamentalista, penso que em determinadas circunstâncias devemos libertar a nossa «beast within». O problema aqui é, sempre, determinar as circunstâncias que nos conferem essa legitimidade... é, aliás, uma questão que tem perseguido todos os grandes pensadores desde a Antiguidade Clássica. É muito viciante pensar sobre isso e muito inglório, também, porque nunca se encontra «a resposta». Encontram-se muitas explicações, várias respostas (ou tentativas de), mas nunca «a resposta».

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