segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Os "sótãos" das nossas vidas...

Este fim-de-semana estive verdadeiramente enclausurada no “sótão” situado na cave da minha casa. Mal pus o pé na rua e vi a luz do dia. Fiz um passeio no tempo e às recordações da minha vida. Uma viagem cansativa mas que valeu a pena.
Andava há anos para fazer uma reviravolta no amontoado de “coisas” que enchiam de um lado ao outro e até ao tecto um espaço que normalmente utilizamos sem critério, em que o único critério é, normalmente, dele fazer um primeiro recurso para guardar o que não conseguimos no momento decidir dar ou deitar fora. Não conseguimos desfazermo-nos das coisas que, embora tenham sido úteis já cumpriram a sua função ou que nunca o tendo sido temos com elas uma relação de posse material ou afectiva que impede uma separação definitiva.
Não tinha nem pequenas nem grandes forças para fazer uma arrumação à grande desarrumação em que tinha caído há muitos anos a minha arrecadação. Andava à procura de um estímulo para avançar e acabei por decidir forrar o “quadrado” (diga-se de passagem com uma área muito generosa, um privilégio nos tempos que correm) de uma estrutura de prateleiras e armários em madeira que meticulosamente desenhei, imaginado a função que cada parte desempenharia numa arrumação mais ou menos “matemática” dos variados objectos que seriam poupados ao “lixo”. Uma arrecadação assim seria também um motivo para acabar com a ditadura do caos a que as minhas “coisas” tinham sido devotadas há longos anos.
Uma parte do tempo foi dispendido a tirar tudo, mas tudo, para fora, e a descobrir, recordar e sentir cada “coisa” que ia “abrindo”. Para além do muito lixo que pura e simplesmente não consigo perceber como foi possível ter guardado durante tanto tempo, uma boa parte das “coisas” voltaram de novo para dentro ocupando agora um lugarzinho especial, bem à vista, sem os pesos e os “empurrões” do lixo e das outras “coisas” mal desejadas, tal era a situação antes desta intervenção, simultaneamente, de limpeza e reabilitação.
Mas no meio de todo este trabalho, senti uma grande satisfação em tornar a ver muitas recordações da minha vida de infância e de juventude e confirmei a brutal transformação que no mundo ocorreu, desde lá para cá, e não vão assim tantos anos, e como a forma de viver sofreu tantas modificações.
Encontrei no baú das recordações a Cartilha Maternal de João de Deus pela qual aprendi a juntar as sílabas – através de um método que hoje em dia é considerado ultrapassado, mas que foi uma base importante para muitas pessoas da minha geração que escrevem bem; os cadernos do Liceu Filipa de Vilhena no qual fiz os estudos liceais e as cadernetas com as notas e as faltas lançadas – uma escola e uma época em que havia disciplina e respeito e os alunos que faltavam chumbavam por faltas; os discos de vinil dos Beatles e dos Beejees que constituem verdadeiras peças de museu – que os meus Pais de vez em quando lá compravam depois de muito caprichados e sofridos; a raquete de ténis toda em madeira que adorava e nunca emprestava com medo que se partisse – que hoje mais parece uma “colher de sopa” quando comparada com as raquetes altamente tecnológicas que fazem o sucesso de todos os garotos; duas malas de viagem pesadíssimas, feias, sem marca, sem estilo, que me lembro foram comigo na viajem de final de curso – imagino o que me aconteceria se, tendo força para as transportar o que duvido, me apresentasse hoje num aeroporto ou num hotel com material de uma tal categoria; a colecção de porquinhos, constituída por dezenas de exemplares de todos os tamanhos e feitios, de todas as qualidades e decorações – que coleccionei desde pequenita até à entrada na universidade e que me lembro fazia o espanto das minhas amigas; e muitas outras “coisas” apetitosas.
Já me esquecia de uma coisa gira: encontrei numa caixa de farmácia, de plástico, no meio de vários medicamentos, todos já fora de validade, uma pasta de dentes medicinal Couto – que penso ainda se vende em algumas drogarias, mas que as marcas multinacionais trataram de eliminar – e uma caixa de Aspirina, mais ou menos igual à apresentação que tem hoje e imagino que com comprimidos quimicamente bem mais eficazes.
Todas estas “memórias” voltaram para dentro do “sótão”, foram colocadas preciosamente num local reservado à importância que tiveram no passado. Não pensei por algum momento desfazer-me destas antiguidades que são, afinal, tão actuais no meu imaginário e tão importantes para perceber a vida.
Andei no baú do tempo confesso que com alguma nostalgia, mas também com a alegria de o poder fazer. Afinal, há muitos "sótãos" cheios de vida...

11 comentários:

  1. Margarida, li hoje na Pública um artigo da Faíza Hayat com o título "O nosso amor para despojar" que fala sobre um museu que abriu em Berlim, o Museu das Relações Quebradas(www.brokenships.com/novosti.php. É claro que é para quem não tem sótãos tão grandes, mas aqui fica a morada, há sempre uma ou outra coisa que nos apetece atirar pela janela fora nessas arrumações...

    ResponderEliminar
  2. Suzana
    É uma ideia giríssima! São as potencialidades dos sistemas de informação ao serviço da recriação das nossas memórias. Neste caso memórias afectivas espelhadas em imagens e fotografias.
    Os "sótãos" são também
    "bibliotecas" a três dimensões mas em que as nossas memórias têm também uma dimensão física!

    ResponderEliminar
  3. Doce imagem a que nos transporta para aqui, cara Margarida.
    Aqueles objectos têm uma história directamente relacionada com momentos ou periodos de vida que sabem bem recordar, mesmo aqueles que possam ter sido menos agradáveis ou que evoquem a memória de alguem que já não exista, ou que de algum modo possa trazer lembranças indesejáveis. São no entanto o sinal inegável que barreiras foram vencidas, que tanto essas, como as fazes mais gratas se revelaram a "cartilha maternal" para um soletrar claro e definido dos sucessos da vida.
    Podemos considerar esses objectos como medalhas conquistadas pelo desempenho nesta dinâmiga competição que é viver em sociedade.
    Não ha quem, não tenha um ou dois "esqueletos no armário", mas, ha ja poucos a terem gratas memórias no sotão.
    ;))

    ResponderEliminar
  4. A sorte da Margarida foi não ter encontrado multas ou avisos das Finanças! Se encontrasse ficava com o dia estragado...

    ResponderEliminar
  5. gosto de rebuscar baús velhos, gastos pelo tempo. Quem sabe se irei encontar algo bem precioso!

    ResponderEliminar
  6. Caro Professor Massano Cardoso
    É melhor não falarmos de coisas tristes!
    Lá ficou uma parteleira cheia dos impostos pagos, tudo muito direitinho, não vá o fisco notificar-me como já aconteceu duas vezes para eu fazer prova de que o IRS de anos já decorridos tinha sido liquidado!
    Não fosse a mania que tenho de tudo guardar e organizar e estava metida num grande sarilho!

    ResponderEliminar
  7. "Afinal, há muitos "sótãos" cheios de vida..."

    Magnífica frase, Cara Margarida !!!
    Porque ... repleta de sentido.

    Vou guardá-la. Para um próximo post, no meu blog. Post ao qual associarei uma imagem, e obviamente, com a indicação da autoria da frase e da foto. Depois aviso, quando o fizer.

    A propósito de "sótãos", um dia no "meu sotão" (que não é sotão), descobri que tinha 10 anos, guardados, de Jornal Expresso. Palavra, que fiquei impressionada comigo mesmo.
    Normalmente, guardamos aquilo de que gostamos e/ou que tem algum significado para nós.
    É o caso. :-))))

    ResponderEliminar
  8. Caro Bartolomeu
    Procuro valorizar as "coisas" doces porque já nos bastam as coisas azedas com que somos bombardeados todos os dias. As memórias doces do passado nem sempre garantem a doçura de futuro. Mas nem por isso ou talvez por isso mesmo devem ser recordadas.
    Com um pequeno esforço acabamos todos por encontrar no nosso "sótão" gratas recordações!

    Cara mariana
    Seja muito bem vinda a estas "doces" paragens. Quem procura sempre alcança...

    Cara Pézinhos n` Areia
    Muito obrigada pela sua simpatia. Vejo que tem um "pé de meia" importante no seu "sótão"! Dez anos de Jornal Expresso? É obra! Desculpe a curiosidade, mas o que é que tenciona fazer?

    ResponderEliminar
  9. Cara Margarida, muito obrigada pelo seu amável comentário.
    Respondendo à sua pergunta ... por necessidade do espaço, acabei por colocar no "Papelão", grande parte daquele "arquivo" ...:-))), tendo seleccionado apenas alguns jornais e revistas, com artigos e reportagens, que ainda possuem algum significado para mim, e que por isso, continuarão guardados.

    ResponderEliminar
  10. Ainda este ano estou a usar a Cartilha Maternal, tenho alunos que não falam Português e dei-lhes a Cartilha para poderem aprender em casa. É desactualizada, talvez, mas os novos métodos...
    Há cada vez mais alunos com dificuldades no domínio da Língua Portuguesa.

    ResponderEliminar
  11. Caro You Wish
    Bem vindo ao nosso 4R. A Cartilha Maternal de João de Deus nunca estará desactualizada. O método de aprendizagem é muito eficaz, nunca esquecerei. Há ainda algumas escolas que a utilizam.
    Ao ler a sua história fiquei a pensar que é capaz de ser um método de auto-aprendizagem adequado para adultos que não falam o português. Palpita-me que o professor e os alunos vão ter bons resultados...

    ResponderEliminar