segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

As malhas que vamos tecendo

«La moindre chose qui se forme au monde est toujours le produit d'une formidable coincidencePierre Teilhard de Chardin, Le Phénomène humain

Este Natal retomei uma actividade que há muito tinha posto de parte: comprei lãs e meti-me a tricotar umas camisolas para as crianças da família. Andei pelas lojas a tirar ideias, a lembrar efeitos e feitios, e lá fui abastecer-me a uma loja que encontrei por acaso numa ruazinha em Mafra.
Ganhei o gosto pelo tricot no ano em que a minha faculdade ficou uns meses fechada, por alturas da revolução, e um tio meu, que tinha uma loja de lãs, se queixou de que lhe faltava uma empregada. O Inverno estava a chegar, os tempos conturbados não aconselhavam a contratar novos empregados, enfim, uma lamúria que me soou ao ouvido e, daí a oferecer-me para a vaga, foi um instante. Desde cedo tive o hábito de fazer uns trabalhos de estudante, explicações a miúdos difíceis e outras aventuras esporádicas, mas ali teria um ordenado, um horário, um primeiro emprego, em resumo. Ficou então assente, para escândalo da família, que eu iria para a loja até retomar as aulas.
Devo dizer que foi uma experiência muito dura, nunca imaginara como era penoso estar horas e horas atrás de um balcão, cara alegre para quem entrasse, paciência infinita para os caprichos e humores das senhoras que levavam eternidades até se decidirem, vá buscar aquele ali em cima, ora mostre aqueloutro, uma pilha de meadas fora do sítio, outras vezes ficavam a contar a vida toda ou a querer saber da vida dos outros, como se não tivessem mais nada que fazer.
Logo de manhã, antes das nove, era preciso receber os pacotes novos, enormes e pesados, e arrastá-los pelas escadas até ao 1º andar. Depois, subir e descer o escadote para arrumar tudo nas prateleiras, por cores, qualidade, quantidade e, quando se abria a porta, logo soavam os passos das primeiras freguesas a subir as escadas. Tive que aprender a falar com as pessoas consoante o seu género, umas eram cerimoniosas, outras afáveis, outras a evitar confianças porque iam ali como quem ia ao psiquiatra, sentiam-se sozinhas e ir buscar um novelo de lã era um bom pretexto para bisbilhotar. Incrível as conversas que se têm nas lojas.
É claro que também tive que aprender a distinguir as múltiplas qualidades de fio, as diferentes utilizações, o número da agulha certa, as combinações para tirar efeitos, saber o que estava na moda, ter em atenção os objectivos, -“Quero fazer um casaco para o meu neto” ou “- A minha filha viu uma camisola nesta revista, veja lá o que tem aí de parecido…” e aconselhar de acordo com o que era próprio. A curiosidade e a necessidade levaram-me, em breve, a passar dos rudimentos de “saber fazer malha”, que a minha avó me tinha ensinado, para a fase mais avançada de tricotar. O que foi, diga-se, um pau de dois bicos, pois comecei a gastar na loja o pouco ordenado que aí ganhava, não resistia a comprar as novidades e tricotá-las, e lembro-me o sucesso que foi quando uma cliente disse que queria fazer uma camisola igual à que eu vestia! Foi um alarido entre as minhas colegas de balcão, nunca tinha acontecido, contaram às clientes mais antigas e ao fim de poucos dias já todas sabiam da história. Não fosse estarem as aulas a recomeçar, era mais que certo que ia pedir participação nos lucros pela mudança operada no marketing da loja!
Quando as aulas recomeçaram já ia a caminho de aprender a usar a máquina de tricotar, expoente máximo da ousadia na altura, só para profissionais…Estou a brincar, em poucos meses não se aprende assim tanto, refiro-me à máquina, o resto aprendi e aprendi mil outras coisas, o que é ser vendedora ao balcão, o que é ter que conviver oito horas por dia com pessoas com vidas tão diferentes da minha, as dificuldades que elas tinham em gerir um ordenado pequeno, os problemas domésticos cujos relatos ouvia como se espreitasse um mundo desconhecido. A princípio olhavam-me desconfiadas e pouco à vontade, mas a pouco e pouco admitiram-me no grupo e contavam confidências que me deixavam embasbacada. A Isabel, que era a mais nova a seguir a mim, era um pouco gaga, andava muito enervada porque ia casar-se, o namorado era aprendiz num talho e tinham conseguido arrendar uma casa nos subúrbios. Deitava contas à vida mas baralhava-se a meio, só tinha a 4ª classe, e era a Hebe, a solteirona da caixa, magra e encurvada, que lhe fazia as somas, sempre a resmungar que ela ia era meter-se em trabalhos, que se deixasse de casamentos e juntasse o ordenado. A Lurdes, a mais antiga na casa, dava-se grandes ares porque o marido era contabilista numa empresa e vivia em Almada, o filho havia de ser doutor se as más companhias não o levassem por outros caminhos, e ficava ciumenta se eu não lhe dava atenção, amuava e vingava-se, mandando-me atender as clientes mais difíceis.
Lembrei-me desses meses enquanto tricotava as lãs que comprei para o Natal. Lembrei-me de cada uma das empregadas, o que seria feito delas quando a loja fechou, há uns anos, quando as lãs passaram de moda ou era mais fácil comprar feito e as senhoras que subiam as escadas só iam para dois dedos de conversa, já sem a revista debaixo do braço marcada na página com o modelo a copiar. Reparei que já esqueci muito do que me ensinaram para um trabalho perfeito, os começos com elástico, os remates elaborados, os bolsos metidos sem costuras, enfim, alguns segredos da arte, mas que o essencial ficou gravado para sempre.
Enquanto tecia os fios e deixava correr a memória, pensei que não faz mal nenhum aos jovens passarem por algumas experiências de trabalho que estão fora do seu horizonte futuro, até arranjarem melhor podem aprender muito com o que encontram.
Nessa altura, uma vez que estava quase a desistir por não suportar as agruras daquela rotina, encontrei uma frase, creio que de Teilhard de Chardin, que fixei para uso ao longo da vida: “Todo o trabalho tem nobreza se o prendermos a uma Estrela”.
Que a Estrela que guia os nossos sonhos e nos dá ânimo para vencer as dificuldades possa sempre brilhar bem alto nas vossas vidas, é o que desejo a todos neste Natal.

7 comentários:

  1. Vou fixar a frase de Chardin, “Todo o trabalho tem nobreza se o prendermos a uma Estrela”. Concordo. Todo o trabalho é nobre, seja ele qual for. Um conceito que me foi inculcado desde muito novo, até, porque os meus familiares fizeram de tudo.
    A sua experiência laboral, enquanto jovem, foi preciosa e ajudou-a, sem sombra de dúvida, a despertar as belas facetas com que nos mimoseia.
    Há nas suas palavras uma mensagem de esperança para os jovens, rematada pela bela frase de Chardin. O pior é o facto de que entre nós as estrelas já não estarem fixas na abóbada celeste. As nossas estrelas são cadentes! O máximo que podemos fazer é pedir um desejo...

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  2. Bonita história, cara Suzana.
    E um excelente Natal!...

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  3. A propósito da citação inicial e evocando também a minha juventude, embora sem recordar o autor:
    "o menor dos nossos gestos pode ter influência sobre muitas pessoas, mesmo quando não nos apercebemos disso".
    E, por isso, "...temos de os prender a uma Estrela"..

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  4. Cara Susana, este seu texto é muito pedagógico, sobretudo, para quem ainda é jovem.

    É verdade, Cara Susana, conforme escreve que ..."não faz mal nenhum aos jovens passarem por algumas experiências de trabalho que estão fora do seu horizonte futuro, até arranjarem melhor podem aprender muito com o que encontram."
    A prová-lo, está a riqueza do texto que escreveu.

    E eu reforço, ...também tive uma experiência "laboral", talvez mais dura que a sua, na minha juventude, e na Holanda. Vim de lá, para continuar os meus estudos em Portugal, com uma enorme lição sobre a vida, sobre o trabalho, sobre as pessoas. Marcou-me.

    E aprendi uma outra coisa na Holanda, com o modo de vida dos holandeses, forma de estar, que tb me parece, pedagógica para os jovens de hoje. Jovens que são, em muitos casos, hiper-consumistas, e poucos ligados a valores de Conhecimento e de Cultura.

    É que não é preciso muito, em termos materiais, para se viver bem.
    Eu vivia numa assoalhada, como muitos holandeses. A assoalhada era quarto, sala de estar, sala de refeições, etc.
    Partilhava uma cozinha, e um WC, com os restantes, "inquilinos" do andar, um por assoalhada, e que eram vários.
    Acredita a Cara Susana, que tudo estava impecavelmente no sítio e limpo, quer na cozinha, quer no WC ?
    Repare que no mesmo frigorífico havia, géneros alimentares de vários "inquilinos". Ninguém tocava em nada que não lhe pertencêsse.
    Havia um enorme sentido de partilha e de respeito, naqueles dois espaços, que pertenciam a todos.

    Pensei para mim...em Portugal, numa casa, temos de ter assoalhadas para tudo, para comer, para estudar, para dormir. E muitas vezes, nem o elementar espaço comum de escada, se sabe respeitar.

    Temos de aprender a viver bem, mas com menos, para que seja possível repartir por todos.

    Temos de aprender a partilhar e a respeitar, ao mesmo tempo, aquilo que é de todos nós.

    E tudo isto, porque eu quis ter uma experiência de trabalho na Holanda, ainda era uma jovem estudante.

    um abraço

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  5. "Tive que aprender a falar com as pessoas consoante o seu género, umas eram cerimoniosas, outras afáveis, outras a evitar confianças "
    Teilhard de Chardin... I love that guy!!!
    A estrela que cabe a cada um de nós, mantem-se no firmamento, cintilante, tão mais cintilante quão melhor reflectirmos o seu brilho... energias que se transmitem numa dinâmica universal.
    Excelentes sonhos estrelados, cara Drª. Suzana!!!

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  6. Não sei, Massano Cardoso, acho que sempre houve estrelas cadentes e estrelas bem fixas lá no alto, depende de quem procura...
    Cara Pezinhos, sei bem do que fala, uma dasminhas filhas vive agora na Holanda, exactamente como conta, uma casa partilhada com um canadiano, uma chinesa, um grago, enfim, uma Babilónia, além disso aprecem de vez em quando uns ratinhos, como a casa é velha ´não conseguem mantê-los afastados muito tempo. mas é como diz, partilham sem se intrometerem na vida uns dos outros, traçam os limites e cumprem, as comidas no frigorífico, as limpezas, o barulho até certas horas. O que eu costumo dizer é que afinal elas passavam com muito menos do que nós pensámos, a quantidade de preocupações que eu teria evitado se soubesse que é afinal muito menos o que consideram essencial. Antes assim... Mas, quando voltam, sabe-lhes muito bem o conforto da casa materna!

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  7. Ora aí está Cara Susana, a filha poderá confirmar (ou infirmar), sobre o que narrei da minha "dutch experience".

    No fundo o que eu quis dizer, é que, na Holanda, aprendi a perder a "mania das grandezas". A viver com moderação e a saber optar pelo que de facto é importante.

    Em Portugal, é um hábito cultural muito enraizado, e muito prejudicial, e que começa nas camadas jovens. Quero dizer, as pessoas vivem com o que têm, e com o que não têm. Os cartões de crédito dão uma "ajuda", os plafond's bancários nos vencimentos, etc. As Cofidís, as Cetelem´s .... Tudo excelentes "rampas de lançamento" para o precipício.
    É muito bom para os bancos e para-bancárias.
    Para as pessoas tenho dúvidas que o seja.

    E parte das vezes, o que se adquire, sendo de interesse duvidoso, é também e meramente para o "show-off", de querer parecer ser, aquilo que em bom rigor, não se é, nem foi produto do trabalho.
    Há-de ser...:-)))))

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