domingo, 2 de dezembro de 2007

“Novos e velhos” pobres

Começa a ser noticiado com uma certa frequência o fenómeno de “novos tipos de pobres”. Profissionais da educação, médicos e outros, que social e economicamente estão acima da média nacional, já solicitam ajuda ao Banco Alimentar. As razões prendem-se com a fragilidade das condições sociais que podem provocar subitamente quedas abruptas dos rendimentos.
A pobreza envergonhada foi sempre uma realidade em Portugal mas corre agora mais riscos face à situação que vivemos. Acresce a este novo grupo os ditos “tradicionais” que se compatibilizam em mais de dois milhões o que não abona nada a nosso favor.
A pobreza é uma realidade mundial que espelha bem a nossa incompetência enquanto seres pensantes! São várias as tentativas para a erradicar, caso da “Declaração do Milénio”, adoptada em 2000, por todos os 189 Estados Membros da Assembleia Geral das Nações Unidas, que arvora como primeiro objectivo erradicar a pobreza extrema e a fome com duas metas: reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a proporção de população cujo rendimento é inferior a um dólar por dia e reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a proporção de população afectada pela fome. Será que conseguiremos? Não creio! Certas situações são tão vergonhosas ao ponto de levarem muitos responsáveis a elaborar declarações deste tipo, permitindo-lhes aliviar as más consciências. Recordam-se da célebre Conferência Internacional sobre a Promoção da Saúde, realizada em Ottawa, em 21 de Novembro de 1986, onde foi emitida a célebre Carta "Saúde para Todos no Ano 2000"? Mesmo que não passasse de uma mera tentativa para responder à concepção moderna de Saúde Pública, nem isso conseguiram, quanto mais “saúde para todos”!
Comecei desde muito cedo a ouvir relatos sobre pobreza e fome. Alguns eram terríveis e inimagináveis. Vi muitos pobres, mas houve um que me marcou e que não consigo esquecer. Uma mulher coberta de velhos trapos, descalça, lenço na cabeça, muito magra, com dificuldades em caminhar e estranho sorriso sardónico, salivando pelos cantos da boca, tentando dizer algumas palavras, das quais apenas se conseguia destacar sopa, batia à porta, invariavelmente, todas as semanas, na altura em que regressava da escola para almoçar. Comia sofregamente e levava alguns pães. Agradecia e desaparecia. A par desta visão, os cães da rua que ladravam por tudo e por nada ficavam estranhamente quedos e mudos aquando da sua passagem. Nunca compreendi a razão. Um dia deixou de aparecer. Perguntei à minha mãe o que é que teria acontecido. Não soube responder.
Muitos anos mais tarde, num alfarrabista do Porto, encontrei uma obra de um conterrâneo, César Anjo, intitulada “Terra-Mãe”, que descreve a história de José Cândido, um desgraçado que lá para finais dos anos 30 andava à procura de trabalho tendo-lhe alguém dito, perto de Viseu: ...”Vê se encontras trabalho por essas estradas além, onde haja empreitadas que nelas, às vezes, por falta de pessoal, aceitam achadiços como tu”. Andou, andou e foi parar a uma aldeia nos arredores de Santa Comba. A descrição da vida e a forma como se alimentava ilustra bem a miséria e a fome que atingia a maior parte da população …”Ia então preparar o jantar … fazia uma fogueira e colocava junto dela uma panela de barro com água e uma dúzia de batatas partidas ao meio, e um pouco de sal... Depois de cozidas, deitava fora a água da panela e deixava esfriar as batatas, enquanto no brasido assava duas sardinhas. Estava preparado o jantar. As batatas comia-as sem tempero …e comia-as com pedaços de sardinha. … constava a ceia, quase sempre, de um caldo de cebola ou de leitugas que deitava numa grande malga, sobre pedaços de boroa”.
Fome, miséria e pobreza não são compatíveis com a dignidade humana. Mas existem. Ao existirem confirmam a expressão de Schopenhauer, segundo o qual, “O mundo é um inferno e os homens são, por um lado, as suas almas atormentadas, e por outro, diabos à solta”.

4 comentários:

  1. Meu caro amigo, Schopenhauer não é uma boa companhia quando a moral está em baixo e não apetece mesmo nada andar a levar cartas a Garcia!Tem razão no seu post, a pobreza e a miséria são um tormento que já não devia existir mas com que os confrontamos todos os dias, agora até sabemos que os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Mas às vezes também já estou cansada dos grnades números, milhões e milhões de doentes, milhões de crianças a morrer de fome, milhares de mortos em desgraças de toda a ordem , todos os dias. Será que não se conseguiu melhorar nada entretanto, que o esforço de gerações deixou tudo ainda pior? O Prof. Massano sabe melhor que ninguém o que se tem progredido, até que ponto é possível hoje viver mais e melhor. Não temos o mundo perfeito, longe disso, mas ainda vamos a caminho do limiar da utopia... Nâo dê ouvidos a Schopenhauer e ao seu pessimismo filosófico, o mundo pode ser um inferno e um céu, já nos deu aqui inúmeros testemunhos de um pedaço de azul entre as nuvens!

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  2. Sem dúvida, a solideriedade humana é imprescindível, quer haja ou não fome, quer haja ou não doença. Solideriedade, é um sentimento que nos coloca em pé de igualdade com o nosso semelhante, mas disposto a prestar-lhe o auxílio de que necessita, partilhando com ele, aquilo de que se dispõe, mesmo que pouco.
    Comiseração, é um sentimento que nos parece humanista, mas que só é possível se nos colocarmos num nível diferente daquele que está a sofrer.
    Neste post, caro Dr. Massano Cardoso, eu posso identificar os dois sentimentos. E penso que aquilo que não nos permite avançar no sentido de fazer desaparecer efectivamente a pobreza, como a cara Drª. Suzana sugere que já deveria ser obrigatório nestes tempos, é o facto de desenvolvermos campanhas e intenções, adoptando uma postura de comiseração.
    Por mais voltas que dê à imaginação, não encontro forma mais eficaz, para realizar a solideriedade que aquela que S. Francisco encontrou.
    Utopia não é um sonho, é o sonho que ainda não foi realizado e eu penso que o sonho a realizar, não tem relação directa com estratégias pensadas para mobilizar cada um de nós a abrir a bolsa e partilhar o que lá tem dentro com os mais desfavorecidos, mas sim, abrir as mãos e o coração, olhar o outro nos olhos e repartir com ele.
    Avancemos...

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  3. Uma má gestão de recursos pode equivaler a uma ausência dos mesmos.
    Quando há recursos, eles também mudam, e as prioridades têm que se adaptar essa mudança.

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  4. A constatação da evidência que a Lenor apresenta, esbarra numa pequena consideração. É necessário nomear um árbitro que defina a boa e a má gestão dos recursos.
    Numa determinada optica, poupar, reduz a despeza. Noutra, oposta, diminui a produção, logo o investimento, logo a criação de postos de trabalho, logo ... um ror de outros sectores económicos.
    Portanto cara Lenor, não sei se são as prioridades a ter de se adaptar, se os tais gestores que umas vezes são melhores que outras.

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