segunda-feira, 25 de agosto de 2008

“Demência”...

Convivi sempre com pessoas de idade e aprendi muito com elas.
O conceito de que a idade acarreta bom-senso, paz, serenidade e sabedoria é verdadeiro mas só em parte. Acompanha-a outras facetas, ângulos sombrios e tristes, marcados pelo arrependimento, subversão, doença, sofrimento e a estranha percepção de que o fim está ao virar da esquina mais próxima.
O livro, “A mesa de limão”, de Julian Barnes, escritor britânico, demonstra, através de vários contos as diferentes realidades emergentes no decurso do envelhecimento. A escolha do título, baseou-se na simbologia chinesa, segundo a qual o limão representa a morte.
Ao mesmo tempo que lia esta obra, deliciava-me com uma outra, “Gente de palmo e meio” de Augusto Gil. Os contos deste genial autor focam as crianças com as suas aspirações, visões do mundo, virtudes, traquinices, medos, desejos, insegurança, tragédias, alegrias e sempre muita esperança mesmo entre os mais desafortunados; em perfeito contraste com a obra de Barnes. Augusto Gil oferece-nos doces e suculentas laranjas que, com o tempo, e na perspectiva “barniana”, acabarão por se transmutar em amargos limões.
A primeira vez que tive a noção do que era a demência ocorreu quando tinha acabado de entrar na faculdade. A tia São, que conheci sempre velha, e que tinha perdido o único filho quando era nova e depois o marido, era uma pessoa alegre, seca de carnes, com um permanente sorriso infantil, encantadora, exímia contadora de estórias, fazia de tudo e, sobretudo, adorava conversar. Vivia num concelho vizinho e, sempre que a visitava, fazia-me uma festa dos diabos, do género: - Oh Manelzito, como estás crescido! E logo a seguir: - E como vai a escola? Contava-me estórias e preparava-me um lanche em que era obrigado a comer um pão enorme de centeio, quentinho, barrado, generosamente, com manteiga e ornamentado com uma boa lasca de presunto, acompanhado, quase sempre, de uma valente caneca de café de cevada. Mas, às vezes, sobretudo no Verão, sem que mais ninguém soubesse, ofertava-me um copito de vinho morangueiro, fraquito, que surripiava na adega, onde me levava a pretexto de qualquer coisa. – Não digas a ninguém que eu te dei o vinho! Estás a ouvir? Era a única vez que ficava séria! Claro que não me fazia rogado!
Quando adoeceu, foi para casa da minha avó. Ao princípio não me apercebi bem o que se passava. Tinha longos momentos de lucidez. Mas de tempos a tempos, virava-se para mim e dizia: - Oh Manelzito, como estás crescido! Como vai a escola? E eu lá lhe dizia, claro. Passados pouco minutos, depois de silêncios confrangedores, olhava para mim e perguntava: - Quem és tu? – Então tia, não me está a reconhecer? Olhava, olhava e dizia com expressão de satisfação: - Oh Manelzito, como estás crescido! E como vai a escola? Depois abria a janela da sua mente e conversava normalmente, contando coisas do passado e interessantes estórias, algumas das quais nunca tinha ouvido, sempre com o seu sorriso infantil.
Com o tempo, a lucidez foi-se apagando e os períodos de reconhecimento do género: - “Oh Manelzito, como estás crescido! E como vai a escola?”, tornaram-se menos frequentes, até que a janela do tino se fechou definitivamente e ficámos sem o seu sorriso infantil e sem as estórias encantadoras, passando o resto da vida, se é que se pudesse chamar vida, num estado lastimável.
Recordei-me da tia São, mulher do povo, dura, simples e culta, que poucas vezes deverá ter saído de um círculo com um raio de dez quilómetros, devido aos seus contos - a lembrar, embora à distância, Augusto Gil, obrigando-me no fim a retirar as conclusões morais dos mesmos. E só me largava quando ficava satisfeita. Um verdadeiro exame oral! -, e devido à notícia segundo a qual a antiga primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher, se encontra demente, conforme relata a sua filha num livro.
O fenómeno da demência está a tomar proporções epidémicas. Ainda há dias, a imagem de Adolfo Suarez, que desempenhou um papel importante na transição democrática em Espanha, ao lado do rei, desconhecendo o papel que teve naquele país, incomodou-me. Outros exemplos de políticos famosos que exerceram com brilhantismo as suas actividades acabaram por vir a sofrer desta terrível doença, caso de Ronald Reagan.
É estranho que muitas pessoas brilhantes, quer tenham sido presidentes, primeiros-ministros, cientistas, artistas ou simples mulheres e homens do povo, mas que revelaram um qualquer traço de superioridade ou até de genialidade, acabem por perder o juízo.
Será que estamos perante um caso de pleiotropia? Vantagem na vida adulta e desvantagem na velhice? Laranjas doces que acabam por transformar-se em limões?
Mas, pensando bem, quem quer comer laranjas amargas?!

7 comentários:

  1. Anónimo23:32

    Caro professor, muito oportuna esta sua reflexão sobre a demência. Infelizmente as laranjas doces, antes de transformarem-se em limões passam mesmo pela fase de laranjas amargas. E exigem às demais laranjas do laranjal muita paciencia, muito carinho, mas também muita pena por verem uma laranja que foi doce passar a amarga no seu caminho para limão.

    São as coisas da existência, o fio da vida. Um dia, também nós, chegaremos lá. Todavia, eu, por mim, gostaria de passar directamente de laranja a limão, sem a fase da laranja amarga. Não quero dar a terceiros o desgosto (ou gosto nalguns casos) de me verem trilhar o caminho da laranja amarga.

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  2. Assistir ao envelhecimento dos que nos são queridos é uma rude prova ao amor que lhes temos mas é a contrapartida de termos todo a sorte de os ter connosco muito tempo, todo o tempo possível. Na demência dos velhos temos que amar ainda mais o que sobra daquilo que foram e retribuir-lhes, ainda que o não saibam, tudo o que souberam dar-nos. Expor a demência de um velho é uma coisa chocante, não sei porque motivo a filha de MT o fez, talvez tenha sido por bem, talvez para a deixarem em paz. Mas seria mesmo necessário? Não li o livro e não quis ler a notícia, prefiro pensar que MT tem direito a um fim digno e respeitoso, prefiro lembrar-me dela como a mulher de ferro.

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  3. Caro Professor Massano Cardoso:
    Desculpe a minha dúvida: estamos a falar de coincidências, e nesse caso estes casos não têm expressão?
    Pelo que já li, as pessoas mais receptivas a este tipo de degradação são aquelas que não exercitam o cérebro...

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  4. As causas da demência são complexas e tem sido associadas a inúmeros factores. Desde estar parado ou andar, desde comer tofu ou não comer alhos, desde ter grandes barrigas e a não fumar ou a não ter hábitos de leitura, desde ser solteiro a ser casado, desde beber álcool a não beber café ou chá, desde comer junk food a não fazer dieta mediterrânica etc... Ou seja parece que tudo tem a ver e a não ver com esta doença.
    Claro que há ainda os aspectos genéticos, mas passemos à frente.
    Coincidências? Pode ser. A vida é cheia de coincidências. Os relatos de muitas individualidades públicas e menos públicas mostram as tais duas imagens antagónicas. Brilhantismo na juventude e idade adulta e degradação na velhice. Talvez neste grupo de pessoas o contraste seja mais marcante face à vulgaridade e por isso muito mais contundente.
    De qualquer modo o exercício mental parece que trava a degradação intelectual. Quem sabe se os blogues não poderão ter um efeito protector, a par da leitura, da reflexão e da criatividade cultural. Esperemos que sim. Vale a pena tentar. Pelo menos deverá ser muito mais eficaz do que andar a roer maçãs, se bem que escrever e trincar uma maçã ao mesmo tempo é um duplo acto de prazer....

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  5. Caro Professor Massano Cardoso:
    Estou-lhe grato pelo esclarecimento.
    Permita-me dizer-lhe que, a ser provado que o exercício mental é realmente um dos factores que melhor contribui para a diminuição da demência, então, a leitura dos seus posts, assim como a de todos os autores do 4R são, com certeza, um dos melhores exercíciosão para o efeito.

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  6. A humanidade caminha a passos largos para a demência colectiva e isto não é uma figura retórica.
    Alás, esta progressão já tinha sido anunciada ha várias décadas, por cîentistas de vários paízes, apontando a passagem do milénio como ponto de viragem comportamental.
    Verificamos que essa mudança já teve início e que as mais bizarras formas de comportamento humano ganham dia para dia uma dimensão preocupante.
    Notamos ainda que a estabilidade emocional da sociedade se degrada potencialmente, gerando reflexivamente uma onda que abrange vertiginosamente mesmo aqueles que pelas razões supostas, ainda lhe vão escapando.
    Esperam-nos tempos de loucura generalizada que, irá muito provávelmente constituir o novo mote que dará origem à extinção da espécie. Ou então... ao nascimento de uma nova espécie.
    Os antigos Gregos teriam razão quando reconheciam o génio da loucura.

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  7. Excelente post, Dr. Massano. A demência é uma doença deveras assutadora, mas que não esatmos livres de um dia ficarmos dementes.

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