Aproxima-se o fim de ano e, como é habitual, começam a chover mensagens de desejos de Bom Ano nos telemóveis com os seus irritantes toques a anunciá-las em catadupa.
Fim de ano sem barulho não é fim de ano. Gritos, música em altos berros, assobios, foguetes, tiros de garrafas de espumante, cornetas, assobios, enfim, ruído e sempre ruído como que a exorcizar a morte do ano e o nascimento de um novo.
Não sei quantos anos tinha quando me apercebi deste tipo de festividade, mas recordo-me ter estado de cama, devido a uma daquelas doenças que atingia a miudagem. Estava em casa da minha avó e havia alguma azáfama. À noite, deitado na cama, ouvia a ribeira a contorcer-se de dores, porque, quando chegava aos Aldrogãos, tinha que contornar algumas pedras e furar debaixo de uma velha passagem de pedra. Pelo tipo de barulho conseguia calcular o caudal que, consoante aumentava ou diminuía, se transformava em múltiplos cantos. Os daquela noite eram sugestivos de um caudal já apreciável, até, porque tinha chovido nos dias anteriores. Sabia, também, que o frio ondulava lá fora entre a ribeira e o céu estrelado. Enquanto as ramagens do arvoredo se esfregavam umas contra as outras na esperança de se aquecerem, eu pensava que coisa era essa de acabar um ano e começar outro. A minha mãe, sentada na beira da cama, dava os últimos retoques numa camisola que deveria vestir no dia seguinte. Perguntei se a mudança de ano era feita sempre de noite e com tempo frio. Que sim, o fim de ano ocorre no Inverno e por isso é frio. De noite, porque o começo de um novo dia inicia-se sempre à meia-noite. – E há sempre festa? – Há! Com mais ou menos arraial e com mais ou menos comezaina. Pensei e, naturalmente, perguntei se não poderiam alterar a mudança do ano para o Verão, para o meio-dia, assim as crianças podiam participar nos festejos. Olharam para mim com ar meio surpreendido, abanando a cabeça ao jeito típico dos adultos quando ouvem disparates infantis. Enquanto ia deambulando por estas cogitações, começo a ouvir uma berraria dos diabos, e ruídos de tachos, panelas e muitos chocalhos, misturados com os sons da ribeira. Assustei-me. Soerguei-me de repente e perguntei o que é que se estava a passar, porque é estavam a gritar e a fazer barulho. – É por causa do velho! – Do velho? – Sim vão a correr atrás do “velho” para o afugentar. E eis que de repente ouço de uma forma muito distinta: - É o velho! É o velho! Foge velho! Vai-te embora, velho! Os ruídos tornaram-se ensurdecedores, mas havia um que me chamou a atenção: o som de um chocalho que eu conseguia distinguir perfeitamente. – Ouçam! Eu conheço aquele som. É do chocalho pequeno que está atrás da porta da cozinha. Como é que ele anda ali? – Foi a avó que o emprestou! Não gostei nada que o tivesse emprestado, as menos podia ter emprestado o grande que estava na adega, mas este era pesado demais para andar na borga. – Mas andam atrás de um velho? Enquanto fazia a pergunta, imaginava um velhinho trôpego de barbas brancas a fugir daqueles gabirus que se entretinham em persegui-lo aos gritos, ainda por cima com o meu chocalho. Não gostei mesmo nada do que lhe estavam a fazer. Aperceberam-se da minha preocupação, dizendo que era uma brincadeira, um faz de conta, porque o ano velho estava a acabar e tinham que o afastar para que o novo pudesse entrar. – Brincadeira, faz de conta, pessoas crescidas a comportarem-se daquela maneira! Não estava a encaixar muito bem, mas, de repente, o sino da torre começa a badalar, instalando-se um silêncio, e, ao fim de doze toques bem sonoros, regressaram os gritos e os ruídos mas com outra sonoridade, mais alegre, entre os quais se destacava o som característico do meu chocalho. Pensei: um dia também quero ir chocalhar ao velho e dar as boas vindas ao novo. Anos mais tarde corri atrás do velho com o chocalho pequeno em cima da passagem de pedra dos Aldrogãos, indiferente aos gemidos da ribeira e ao ondular da brisa fria.
Há décadas que eu não sei onde pára o chocalho. Se o tivesse à mão, aproveitaria para chocalhar o “velho”. Não o tendo, vou fechar os olhos e regressar à primeira noite em que me disseram que os anos também morrem e nascem e vou ouvir o meu chocalho…
Fim de ano sem barulho não é fim de ano. Gritos, música em altos berros, assobios, foguetes, tiros de garrafas de espumante, cornetas, assobios, enfim, ruído e sempre ruído como que a exorcizar a morte do ano e o nascimento de um novo.
Não sei quantos anos tinha quando me apercebi deste tipo de festividade, mas recordo-me ter estado de cama, devido a uma daquelas doenças que atingia a miudagem. Estava em casa da minha avó e havia alguma azáfama. À noite, deitado na cama, ouvia a ribeira a contorcer-se de dores, porque, quando chegava aos Aldrogãos, tinha que contornar algumas pedras e furar debaixo de uma velha passagem de pedra. Pelo tipo de barulho conseguia calcular o caudal que, consoante aumentava ou diminuía, se transformava em múltiplos cantos. Os daquela noite eram sugestivos de um caudal já apreciável, até, porque tinha chovido nos dias anteriores. Sabia, também, que o frio ondulava lá fora entre a ribeira e o céu estrelado. Enquanto as ramagens do arvoredo se esfregavam umas contra as outras na esperança de se aquecerem, eu pensava que coisa era essa de acabar um ano e começar outro. A minha mãe, sentada na beira da cama, dava os últimos retoques numa camisola que deveria vestir no dia seguinte. Perguntei se a mudança de ano era feita sempre de noite e com tempo frio. Que sim, o fim de ano ocorre no Inverno e por isso é frio. De noite, porque o começo de um novo dia inicia-se sempre à meia-noite. – E há sempre festa? – Há! Com mais ou menos arraial e com mais ou menos comezaina. Pensei e, naturalmente, perguntei se não poderiam alterar a mudança do ano para o Verão, para o meio-dia, assim as crianças podiam participar nos festejos. Olharam para mim com ar meio surpreendido, abanando a cabeça ao jeito típico dos adultos quando ouvem disparates infantis. Enquanto ia deambulando por estas cogitações, começo a ouvir uma berraria dos diabos, e ruídos de tachos, panelas e muitos chocalhos, misturados com os sons da ribeira. Assustei-me. Soerguei-me de repente e perguntei o que é que se estava a passar, porque é estavam a gritar e a fazer barulho. – É por causa do velho! – Do velho? – Sim vão a correr atrás do “velho” para o afugentar. E eis que de repente ouço de uma forma muito distinta: - É o velho! É o velho! Foge velho! Vai-te embora, velho! Os ruídos tornaram-se ensurdecedores, mas havia um que me chamou a atenção: o som de um chocalho que eu conseguia distinguir perfeitamente. – Ouçam! Eu conheço aquele som. É do chocalho pequeno que está atrás da porta da cozinha. Como é que ele anda ali? – Foi a avó que o emprestou! Não gostei nada que o tivesse emprestado, as menos podia ter emprestado o grande que estava na adega, mas este era pesado demais para andar na borga. – Mas andam atrás de um velho? Enquanto fazia a pergunta, imaginava um velhinho trôpego de barbas brancas a fugir daqueles gabirus que se entretinham em persegui-lo aos gritos, ainda por cima com o meu chocalho. Não gostei mesmo nada do que lhe estavam a fazer. Aperceberam-se da minha preocupação, dizendo que era uma brincadeira, um faz de conta, porque o ano velho estava a acabar e tinham que o afastar para que o novo pudesse entrar. – Brincadeira, faz de conta, pessoas crescidas a comportarem-se daquela maneira! Não estava a encaixar muito bem, mas, de repente, o sino da torre começa a badalar, instalando-se um silêncio, e, ao fim de doze toques bem sonoros, regressaram os gritos e os ruídos mas com outra sonoridade, mais alegre, entre os quais se destacava o som característico do meu chocalho. Pensei: um dia também quero ir chocalhar ao velho e dar as boas vindas ao novo. Anos mais tarde corri atrás do velho com o chocalho pequeno em cima da passagem de pedra dos Aldrogãos, indiferente aos gemidos da ribeira e ao ondular da brisa fria.
Há décadas que eu não sei onde pára o chocalho. Se o tivesse à mão, aproveitaria para chocalhar o “velho”. Não o tendo, vou fechar os olhos e regressar à primeira noite em que me disseram que os anos também morrem e nascem e vou ouvir o meu chocalho…
"Não devemos tirar conclusões apressadas"
ResponderEliminarSempre ouvi referir este "refrão"...
Pois bem, prevariquei, ou seja, faltei-lhe ao sentido, pois mal comecei a ler este texto de encantos, conclui em primeiro lugar que estava a ler um excerto dos "Contos da Montanha" de Torga, mais adiante percebi que concluira mal, que afinal estava a ler as "Viagens na Minha Terra" de Garrett, só ao chegar ao final, à barrinha cinzenta e ao "topar" com (posted by Salvador Massano Cardoso) é que percebi que acabara de ler um fabuloso texto, memória do homem que continua a sentir-se parte integrante da terra e das gentes.
Para si, caro Professor e para os restantes autores e comentadores deste espaço, endereço os meus votos de um excelente 2009.
Em tom de nota... estou a terminar de ler o "Codex 632" de Rodrigues dos Santos, determinada passagem do livro, tem como cenário a Quinta da Regaleira em plena Serra de Sintra, com todos os seus mistérios e esoterísmo. Nesta passagem, José Rodrigues dos Santos, aborda a questão da numerologia e do simbolísmo do número 9, o qual se encontra ligado a diferentes significados, um deles, incontornávelmente real é o que tem a ver directamente com o período de gestação que culmina com o nascimento de um novo ser e uma nova vida, os quais irão manter o mundo vivo e em movimento.
~Façamos votos que o número 9 que compõe o próximo ano seja de renascimento e de recuperação dessa vida.
Façamos por isso!
Seguindo 3 provérbios essenciais do livrinho da nossa amiga Drª. Suzana Toscano:
- Se quiseres ser feliz toda a vida, planta um jardim
- Não há jardins sem sementes
- Os jardins não se fazem ficando sentados na sombra
;)
Meu caro Professor, para que não "chocalhe" o telemóvel, aproveito esta via mais silenciosa para lhe desejar o melhor para 2009.
ResponderEliminarAcrescento, egoista, o desejo de continuar a ser brindado neste novo ano, com os escritos do meu Ex.mo Amigo neste espaço comum.
Belo texto, a coroar mais um ano de lindos escritos, caro Prof.Também sempre achei curiosa essa tradição de fazer barulho para espantar o ano Velho, aqui na cidade batiam-se as panelas, acho que depois foi probido e é de facto muito melhor ouvir os foguetes e, como tenho muita sorte em viver perto do rio, maravilhar-me com o fogo de artifício que começa mesmo à meia noite.
ResponderEliminarÈ difícil espantar as memórias antigas para que o nosso espírito tenha abertura suficiente para acolher o que o futuro nos reserva,na esperança de que seja sempre melhor. Mas podíamos espantar só algumas, os anos passados deixam sempre algumas (ou muitas) excelentes recordações que não devem ser espantadas mas muito bem guardadas. Para nos consolarem quando os maus momentos surgem. Um abraço muito amigo.