terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Fome e canibalismo

No decurso de uma reunião de amigos, um deles abordou um conjunto de reflexões e perguntas sobre a situação em Portugal e no mundo.
Um país pobre e cego nas aplicações das regras e diretivas comunitárias. Um país obsessivo com a aplicação de “legislação súbita”, não isenta de interesses corporativos. Um país, cujos sistemas politico, social, económico, financeiro, policial e judicial estão ou são reféns de grupos de mesquinhos interesses individuais ou coletivos. Um país que se alimenta de cartas anónimas e documentos apócrifos. Um país que se diverte com a devassa da vida dos cidadãos. Um país que espuma de prazer com os julgamentos públicos, à boa maneira dos auto-de-fé da Inquisição. Um país que corre o risco de se policiar. Um país que não foge à regra de ser vítima de fraudes económicas. Um país cada vez menos governado por políticos e cada vez mais violado e espoliado por grupos que fazem do poder económico o seu deus. Enfim, muitas reflexões e perguntas que me provocaram de imediato uma série de associações.
Em primeiro lugar, o meu amigo manifestou uma fome tremenda, não física, mas de honra e de honestidade que me levou a recordar o livro, “Fome”, de Knut Hamsun. Nesta obra excecional, o autor retrata as vivências de um ser humano que passa fome, fome extensa, ao ponto de ter alucinações e de ficar frequentemente à beira da loucura. Nesta situação extrema, contudo, nunca perdeu o sentido da honestidade e da honra. Queria que lhe reconhecessem o seu valor como cronista, tinha fome física, mas também fome de reconhecimento do seu valor e da sua honestidade. Nunca claudicou. Nunca.
De facto, a natureza humana é muito complexa e há uma situação em que a compostura, a amabilidade, a solidariedade, o respeito, a civilidade, enfim tudo o que é considerado como superiormente humano, se esfuma; na fome.
Nos períodos de fome, os seres humanos são capazes de tudo, matar, destruir, canibalizar. Veja-se os recentes achados das valas comuns em Lisboa, onde restos humanos revelaram, além das consequências físicas do terramoto de 1755, outras consequências, tais como assassínios e canibalismo. É a natureza humana? Melhor diria, é a natureza animal dos seres humanos. Debaixo de tudo que ufanamente nos orgulhamos, esconde-se a mais perfeita animalidade.
Não consigo compreender o comportamento de muitos responsáveis que, por esse mundo fora, numa ânsia de conquista e de domínio sobre os outros são capazes de práticas de canibalismo social. Mas fazem-no, umas vezes às escondidas, outras às descaradas! Será que não têm consciência da sua transitoriedade e pequenez? Será que não conseguem interiorizar as sublimes regras da humanização? Pus-me a pensar que seria, porventura, interessante agarrar nessa cáfila e levá-los a dar umas voltitas ao redor do planeta. Talvez viessem a beneficiar do chamado overview effect (efeito da vista por cima). Está descrito que os seres humanos, ao saírem do planeta, e ao olharem para o globo azul, sentem uma estranha pequenez face ao Universo. Olha-se lá para baixo e não se consegue descortinar países, nem diferenças étnicas, nem religiosas, nem nada que possa sugerir discriminação, superioridade ou vontade de maltratar. Não se visualizam nações separadas pelas economias, pelas línguas, pelas histórias. Nada, apenas uma estranha sensação de humildade e de respeito face à grandiosidade do mundo e do universo.
O espaço concede, ao que já tiveram essa oportunidade, o desfrutar da igualdade em toda a plenitude e a perceção de pertencer a um “ser vivo Uno”, vital à sobrevivência. Quem sabe se não seria uma boa forma de honestar e de responsabilizar muitos que andam por aí?
É preciso matar a fome, todas as formas de fome. Não só a física, mas a da honra, a do valor e a da honestidade. São tantos os famintos...

6 comentários:

  1. Eu definiria Portugal pela comparação de condutas recentes dos nossos políticos com a que teve Tom Daschle nos EUA.
    Convido-o a ir a: http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/02/dignidade-politica-do-afastamento-de.html
    e depois dizer de sua justiça.

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  2. Será que está perto a regeneração ou morreremos à míngua?

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  3. Anónimo10:34

    É sempre um prazer lê-lo, meu caro Professor.

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  4. Excelente, e um bom aviso. Quem tem ouvidos para ouvir, que oiça!

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  5. Muito bom o seu texto mas fiquei com uma questão às voltas na minha cabeça: "Depois de tudo ainda os levávamos a ver as vistas? A passear?" Acho injusto...

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  6. Cara Mlle.Petite
    Achei interessante o seu comentário que me despertou a seguinte ideia: acha que seria mais interessante deixá-los permanentemente em órbita?!!
    ;))

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