Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que contasse histórias. “Esta narração de histórias é a própria condição do nosso ser. A alternativa seria a inércia total ou o eclipse do nosso ser”. Por este motivo, passo a contar uma história.
Recordo que era muito miúdo e fazia um calor diabólico. Em casa dos meus avós procurava a escadaria em madeira da entrada por ser a zona mais fresca, contribuindo para o efeito uma brisa produzida por uma pequena janela situada no topo que, assim, protestava contra o calor que entrava pela porta. Fosse verão ou inverno a porta estava sempre entreaberta de manhã à noite, porque dava, também, serventia a um escritório. Naquela tarde, estava mais uma vez proibido de sair por causa do calor que se fazia sentir. O medo da exposição ao sol era uma constante, talvez porque lhe atribuíssem muitas doenças que afetavam as meninges dos miúdos. Mas não estive sozinho. Uma jovem familiar, mais um amiga, sentadas num degrau a meio das escadas, conversavam e riam-se alegremente ao lerem cartas. As gargalhadas eram diferentes das habituais, brilhavam, faiscavam e fascinavam, porque nunca tinha ouvido nada semelhante, até então. Com o meu carrinho de linhas movido pela força de um elástico que prendia de um lado num bocado de sabão e no outro a um fósforo já usado, e que colocava no vale do longo corrimão de madeira, como se fosse uma pista, descia a correr os degraus para depois esperar pela chegada do meu veículo. Sempre que passava pelas duas, a toda a velocidade, perturbava-as, interrompia a conversa e era repreendido devido ao perigo de queda iminente. Uma das vezes atrevi-me a perguntar-lhes porque estavam tão felizes. Respondeu-me que eu era pequeno demais e não compreendia. Era pequeno, de facto, mas apercebi-me que era coisa de namoros. Curioso, e com mais atenção, confirmei que afinal se tratava daquilo a que mais tarde vim a conhecer como “anda moiro na costa”. E andava mesmo!
Aquela tarde produziu algumas lembranças; caso da coloração amarelada esbranquiçada, mas muito brilhante, que entrava pela porta, em perfeito contraste com a penumbra da escadaria, e as pedras da calçada que tremiam incessantemente, denunciando uma temperatura capaz de fazer saltar as solas naturais dos “pés descalços”, que na altura abundavam. Este quadro estival, excecional, ficou para sempre ligado à frescura, à alegria de duas moças, aos seus risos comprometedores e a uma perspetiva de felicidade futura.
Muitos anos mais tarde, a minha familiar, a tal que usava naquela tarde de verão uma saia branca e salpicada de pequenas pintas vermelhas, tão ao costume dos anos cinquenta, foi confrontada com um tumor da mama. Como jovem médico vivi aquele dramático período. O sorriso mantinha-se, mas era triste, revelando ansiedade quanto ao futuro. Foi operada e pediu-me para assistir. Assim o fiz, talvez porque lhe propiciasse algum conforto, mais do que isso seria impossível. Na altura, em pleno bloco operatório, o meu velho professor de cirurgia, homem de poucas falas e de trato difícil, depois de ter o campo preparado, empunhou o bisturi, olhou para mim e questionou-me: - Dá-me licença que comece? Surpreso, perante este ritual a que não estava habituado, senti como que estivesse irmanado aos tecidos que iriam ser alvo daquele instrumento. Acenei com a cabeça, ao mesmo tempo que balbuciava qualquer coisa como: - Com certeza, senhor professor! No final embrulhou a peça em gaze e pediu-me: - Não se importa de a levar ao Instituto de Anatomia Patológica? Ao mesmo tempo que fez o pedido, colocou-me a mama nas mãos, sentindo um estranho calor. Um calor violentamente extirpado da sua fonte original. Vesti-me, acondicionei a peça num saco de plástico e dirigi-me ao instituto, onde, um outro professor a recebeu e começou a analisar. – Já não é pequeno, mas está bem encapsulado. Amanhã, já sabemos como estão os gânglios. No dia seguinte, lá estava para receber a notícia, afinal, estavam todos íntegros. Foi um alívio que rapidamente lhe transmiti. O seu sorriso ansioso transformou-se, subitamente, num novo sorriso. Um sorriso de esperança!
Ao fim de muitos anos a “boa morte” apanhou-a, subitamente, num linda manhã primaveril.
Deitada à minha frente, com a cara tapada por um singelo lenço de seda, observava as pessoas que o retiravam para dar uma última olhadela. Não o fiz. Nunca faço a ninguém. Recuso. Não porque tenha qualquer dificuldade em lidar com a morte, mas porque prefiro saborear momentos da vida. A visão da máscara da morte não me serve para nada e não quero que ofusque as minhas lembranças, porque a vida resume-se a um sucedâneo de pequenas lembranças, lembranças que se alimentam da vida, lembranças que esperam o momento de nos transformarmos em lembranças, meras e transitórias lembranças. Consigo lembrar-me de uma tarde estival, há muitas décadas atrás, em que ouvi pela primeira vez gargalhadas de felicidade a desafiar o futuro e, mais tarde, sorrisos de esperança num futuro incerto.
Lembranças...
Recordo que era muito miúdo e fazia um calor diabólico. Em casa dos meus avós procurava a escadaria em madeira da entrada por ser a zona mais fresca, contribuindo para o efeito uma brisa produzida por uma pequena janela situada no topo que, assim, protestava contra o calor que entrava pela porta. Fosse verão ou inverno a porta estava sempre entreaberta de manhã à noite, porque dava, também, serventia a um escritório. Naquela tarde, estava mais uma vez proibido de sair por causa do calor que se fazia sentir. O medo da exposição ao sol era uma constante, talvez porque lhe atribuíssem muitas doenças que afetavam as meninges dos miúdos. Mas não estive sozinho. Uma jovem familiar, mais um amiga, sentadas num degrau a meio das escadas, conversavam e riam-se alegremente ao lerem cartas. As gargalhadas eram diferentes das habituais, brilhavam, faiscavam e fascinavam, porque nunca tinha ouvido nada semelhante, até então. Com o meu carrinho de linhas movido pela força de um elástico que prendia de um lado num bocado de sabão e no outro a um fósforo já usado, e que colocava no vale do longo corrimão de madeira, como se fosse uma pista, descia a correr os degraus para depois esperar pela chegada do meu veículo. Sempre que passava pelas duas, a toda a velocidade, perturbava-as, interrompia a conversa e era repreendido devido ao perigo de queda iminente. Uma das vezes atrevi-me a perguntar-lhes porque estavam tão felizes. Respondeu-me que eu era pequeno demais e não compreendia. Era pequeno, de facto, mas apercebi-me que era coisa de namoros. Curioso, e com mais atenção, confirmei que afinal se tratava daquilo a que mais tarde vim a conhecer como “anda moiro na costa”. E andava mesmo!
Aquela tarde produziu algumas lembranças; caso da coloração amarelada esbranquiçada, mas muito brilhante, que entrava pela porta, em perfeito contraste com a penumbra da escadaria, e as pedras da calçada que tremiam incessantemente, denunciando uma temperatura capaz de fazer saltar as solas naturais dos “pés descalços”, que na altura abundavam. Este quadro estival, excecional, ficou para sempre ligado à frescura, à alegria de duas moças, aos seus risos comprometedores e a uma perspetiva de felicidade futura.
Muitos anos mais tarde, a minha familiar, a tal que usava naquela tarde de verão uma saia branca e salpicada de pequenas pintas vermelhas, tão ao costume dos anos cinquenta, foi confrontada com um tumor da mama. Como jovem médico vivi aquele dramático período. O sorriso mantinha-se, mas era triste, revelando ansiedade quanto ao futuro. Foi operada e pediu-me para assistir. Assim o fiz, talvez porque lhe propiciasse algum conforto, mais do que isso seria impossível. Na altura, em pleno bloco operatório, o meu velho professor de cirurgia, homem de poucas falas e de trato difícil, depois de ter o campo preparado, empunhou o bisturi, olhou para mim e questionou-me: - Dá-me licença que comece? Surpreso, perante este ritual a que não estava habituado, senti como que estivesse irmanado aos tecidos que iriam ser alvo daquele instrumento. Acenei com a cabeça, ao mesmo tempo que balbuciava qualquer coisa como: - Com certeza, senhor professor! No final embrulhou a peça em gaze e pediu-me: - Não se importa de a levar ao Instituto de Anatomia Patológica? Ao mesmo tempo que fez o pedido, colocou-me a mama nas mãos, sentindo um estranho calor. Um calor violentamente extirpado da sua fonte original. Vesti-me, acondicionei a peça num saco de plástico e dirigi-me ao instituto, onde, um outro professor a recebeu e começou a analisar. – Já não é pequeno, mas está bem encapsulado. Amanhã, já sabemos como estão os gânglios. No dia seguinte, lá estava para receber a notícia, afinal, estavam todos íntegros. Foi um alívio que rapidamente lhe transmiti. O seu sorriso ansioso transformou-se, subitamente, num novo sorriso. Um sorriso de esperança!
Ao fim de muitos anos a “boa morte” apanhou-a, subitamente, num linda manhã primaveril.
Deitada à minha frente, com a cara tapada por um singelo lenço de seda, observava as pessoas que o retiravam para dar uma última olhadela. Não o fiz. Nunca faço a ninguém. Recuso. Não porque tenha qualquer dificuldade em lidar com a morte, mas porque prefiro saborear momentos da vida. A visão da máscara da morte não me serve para nada e não quero que ofusque as minhas lembranças, porque a vida resume-se a um sucedâneo de pequenas lembranças, lembranças que se alimentam da vida, lembranças que esperam o momento de nos transformarmos em lembranças, meras e transitórias lembranças. Consigo lembrar-me de uma tarde estival, há muitas décadas atrás, em que ouvi pela primeira vez gargalhadas de felicidade a desafiar o futuro e, mais tarde, sorrisos de esperança num futuro incerto.
Lembranças...
É um verdadeiro privilégio, poder ler os seus textos e conhecer as reflexões que tão simpáticamente partilha com os seus leitores, Senhor Professor.
ResponderEliminarÉ realmente a memória, que torna aqueles que que nela ficaram gravados, imortais.
Caro Professor, os seus "Retalhos da Vida de um Médico", sempre tão cheios de humanidade e simplicidade, levam-nos consigo até à cena da sua memória e é como se tivéssemos estado ali, a partilhar essa vivência. Excelente contador de histórias!
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