O leitor terá, certamente, a ideia – que continua muito enraizada na sociedade portuguesa – de que a despesa pública em Portugal é “baixa”. “A verdade é que estamos abaixo da média da Europa” – é frequente ouvir-se. Sucede, porém, que esta “verdade” desde há muito o deixou de ser.
Este ano, 2009, pela primeira vez, que me lembre, a despesa pública total atingirá mais de metade (!) da riqueza nacional: numa base comparável com os anos anteriores[i], a despesa total do Estado chegará a 51.3% do PIB. Quer isto dizer que já mais de metade da produção nacional em 2009 será canalizada para as Administrações Públicas (Estado Central, Regiões Autónomas e Autarquias Locais). Ou seja, os portugueses irão trabalhar até aos primeiros dias de Julho (mais de metade do ano!...) para pagar a totalidade do Sector Público.
E na União Europeia (UE-27), este nível de despesa corresponde já ao sétimo mais alto – e à posição de Portugal mais próxima do topo de sempre!... Naturalmente, quer a média dos 27 (50%), quer dos 16 países que compõem a Zona Euro (50.1%) foi superada. Para já nem falar que a vizinha Espanha, no 19º lugar e um peso de 45.2%, fica bem longe...
Sucede ainda que já entre 2004 e 2008 o peso da despesa pública na riqueza nacional era da mesma magnitude da média europeia (46.4% e 46.5%, respectivamente, em média, nesses 5 anos). E desde o primeiro ano em que há dados para a UE-27 nesta matéria (1999), a subida da despesa pública portuguesa tem sido imparável. Nesse ano, a posição do peso do Sector Público Português era a 16ª entre os 27 e o peso no PIB era inferior em mais de 3 pontos percentuais à média europeia… Veja-se onde chegámos…
Pode o leitor dizer: atenção – é preciso ver a evolução da despesa pública ajustada dos ciclos económicos, que influenciam quer a arrecadação de receita quer as despesas pagas[ii]. E, tendo o leitor razão, a verdade é que, procedendo dessa forma (correcta), o resultado final até é pior: embora a nossa posição continue a ser a 7ª em 2009, a despesa pública está até mais acima da média europeia (porque, tanto quanto se sabe para já, a crise poderá atingirá mais duramente em umas décimas a Europa do que Portugal): 51.2% contra 49.9%. De resto, a evolução desde 1999 é quase retirada a papel químico do que acima foi referido, começando com um 14º lugar nesse ano.
E pior: esta evolução é explicada pelo comportamento das despesas correntes (em que se incluem os gastos com a “máquina” do Estado, os subsídios, as transferências e o pagamento de juros da dívida pública), em tudo semelhante ao da despesa total[iii], e que representa a fatia de leão do seu valor (mais de 91%)…
… Porque, a verdade é que, se a despesa pública em Portugal não tem crescido mais, isso deve-se unicamente à descida das despesas de capital (e sobretudo do investimento público), em que a tendência tem sido a inversa: o seu peso tem descido no PIB e já é inferior à média europeia[iv].
No contexto de crise em que vivemos, o leitor poderá pensar que a despesa pública portuguesa atingiu este patamar historicamente alto (subiu de 45.9% do PIB em 2008 para uns estimados 51.3% em 2009) porque os estímulos orçamentais do Governo para combater a crise foram elevados… Só que, de acordo com dados divulgados pela própria Comissão Europeia, esses estímulos têm, em Portugal, um peso de apenas 0.9% do PIB, abaixo da média da Zona Euro (1%) e claramente abaixo das ajudas concedidas à economia pelo Governo Espanhol (2.3%)…
Assim sendo, na Europa, com maiores estímulos do que em Portugal, a despesa pública subiu, em média, cerca de 3.5 pontos percentuais do PIB entre 2008 e 2009 – contra os cerca de 5.4 pontos percentuais de subida no nosso país. O que significa que não foi devido ao combate à crise que tal sucedeu…
Vale ainda a pena enunciar os países europeus com maior peso da despesa pública no PIB, até à posição de Portugal: Suécia (56.6%), França (55.6%), Dinamarca (54.9%), Bélgica (52.9%), Finlândia (52.9%) e Áustria (51.9%). Curiosamente, ou talvez não, são países em que, tradicionalmente, a despesa pública elevada tem correspondência em serviços públicos (apoio social, saúde, educação) de reconhecida grande qualidade – o que, como sabemos, infelizmente não acontece em Portugal. Aliás, de acordo com o prestigiado Euro Health Consumer Index (de origem sueca), por exemplo, só países como a Letónia, a Bulgária e a Roménia têm, na UE-27, um pior sistema de cuidados de saúde do que Portugal – mas têm também um nível de despesa pública muito inferior à nossa!...
O peso da despesa pública portuguesa no PIB é, assim, não só muito elevado mesmo no contexto europeu, como totalmente desproporcionado para a qualidade (muito fraca) de serviços que é prestada pelo Estado aos utentes. É certamente possível (e desejável) fazer melhor – e com menos recursos, aplicando de forma mais eficiente menos dinheiro (isto é, menos impostos) dos contribuintes. Acresce que, como já referi, esta realidade tem vindo a ser agravada[v] por um peso cada vez maior das despesas correntes e um peso cada vez mais diminuto das despesas de capital (ao contrário do que se passa na Europa).
Mais uma desmistificação que fica feita – e que reforça a situação cada vez mais delicada em que, em termos económicos, Portugal se encontra. Não é, seguramente, propositada, esta trajectória em direcção ao abismo – e todas as opções políticas que têm sido tomadas são, certamente, muito bem intencionadas. Mas temos que convir que, se assim não fosse, infelizmente, não se notaria grande diferença...
[i] Na apresentação do OE’2009 o Governo decidiu introduzir uma alteração metodológica no que diz respeito ao registo das contribuições para a Caixa Geral de Aposentações que, embora não alterando o valor do défice, faz com o valor das rubricas “despesas com o pessoal” e “contribuições sociais” seja reduzido em mais de 1.5 pontos percentuais do PIB, o que inviabiliza a comparação não só dos valores de 2009 destas rubricas com o passado, mas também dos grandes agregados das receitas e das despesas públicas, que descem todos de valor (e, claro, em percentagem do PIB). Assim, para poder comparar os valores de 2009 com os dos anos anteriores, e porque esta alteração metodológica carece de aceitação (e aprovação) quer por parte do INE, quer do Eurostat, todos os dados relativos ao corrente ano que são citados no texto são calculados de acordo com as regras que continuam a ser aceites a nível internacional e que garantem a comparabilidade ao longo do tempo.
[ii] Por exemplo, quando a economia cresce menos ou se contrai, o Estado recebe automaticamente menos receitas de impostos (o desemprego aumenta e as pessoas ganham menos, logo pagam menos IRS, compram menos bens e serviços, logo pagam menos IVA, etc.). E, também automaticamente, o Estado gasta mais dinheiro, por exemplo, em subsídios de carácter social (como os subsídios de desemprego).
[iii] A evolução da despesa corrente, da despesa corrente primária – que exclui os juros da dívida pública, a componente da despesa que os responsáveis das finanças menos controlam porque depende dos valores das taxas de juro, cuja evolução se encontra ligada às condições da economia e ao stock de dívida pública existente (que, por sua vez, reflecte a evolução das finanças públicas até ao momento em questão) –, e da despesa corrente primária ciclicamente ajustada tem sido muito semelhante à da despesa total: em 1999, nestes três agregados a posição era a 17ª entre os 27, com valores de 37.5%, 34.5% e 34.5% do PIB, respectivamente (em média, entre 5 e 6 pontos percentuais abaixo da UE-27 e da Zona Euro); em 2009, a despesa corrente já é a 7ª mais elevada e as despesas corrente primária e corrente primária ciclicamente ajustada ocupam a 8ª posição com 47.1%, 43.9% e 43.8%, respectivamente. Em todos os casos, já cerca de 1 ponto percentual acima da média da UE-27 e da Zona Euro.
[iv] Nas despesas públicas de capital, a trajectória de Portugal tem sido inversa à da Europa: o peso era de 5.8% do PIB em 1999 (3.5% na UE-27) e no ranking europeu o lugar era o terceiro; em 2009, o peso descerá para 3.8% (já abaixo dos 4.2% da UE-27) e a posição será a 17ª!…
[v] Tratando-se do rácio “Despesa Pública/PIB”, para o seu aumento quase ininterrupto em termos anuais tem também contribuído o fraquíssimo crescimento do denominador desde há dez anos a esta parte. Por exemplo, com uma evolução do PIB acima de 3% ao ano, estes problemas, pelo menos em parte, não se colocariam. Abordarei este tema de forma desenvolvida num texto a publicar brevemente.
Nota: Este texto foi publicado em Junho 09, 2009, no Jornal de Negócios.
Pois é, Miguel, ainda anda por aí a pedir descida dos impostos? Parece-lhe que o "nosso" estado está para aí virado?
ResponderEliminarPor outras palavras:
ResponderEliminarDe frente para o despenhadeiro
nesta penosa e rude caminhada,
a queda nesse esbarrondadeiro
deixará a economia definhada!
A situação é delicada
com tanto esbanjamento,
abeira-se a derrocada
do nosso parco orçamento.
Moral desta triste história:
ResponderEliminarQuem se lixa é o mexilhão
nesta e noutras histórias,
com tanto político brincalhão
e as suas políticas predatórias!
Caro Miguel Frasquilho, para além das despesas de funcionamento do estado e da melhoria da eficiencia do dinheiro a elas alocado, que parte da dívida pode ser re-escalonada por forma a desonerar os OE futuros?
ResponderEliminarFaço esta pergunta com base no raciocinio de alguém decidir realmente uma baixa grande de impostos e outros ingressos do Estado como forma de estimular o investimento. Dada a oneração dos OE futuros com um monte de tarecos, SCUTs e afins, é possivel reescalonar essa dívida por forma a reduzir a oneração anual - mesmo onerando mais globalmente por via dos juros - para dessa forma se conseguirem reduzir as necessidades anuais de dinheiro do Estado, permitindo assim uma forte redução de impostos como factor para estimulo do investimento?