A minha amiga Suzana Toscano pediu: - Conte mais...!
Sendo assim, "publico" um conto que escrevi no Natal para os meus três netos, que ainda não sabem ler... Uma prendinha adiada.
Para a Mariana, João António e Maria Leonor
Ainda não teria seis anos, quando, ao vasculhar, com a típica curiosidade infantil, o sótão lá de casa, deparei-me com um velho aparelho com duas lentes que permitia observar cartões cada um deles com duas fotografias antigas, “perfeitamente” iguais. Intrigado, lá me explicaram como deveria utilizá-lo. Colocava o cartão no suporte e, depois, aproximava ou afastava, mirando-o através das lentes. De repente emiti um ahah, quando as duas fotografias se transformaram numa imagem única com profundidade e volume. Foi a minha primeira percepção estereoscópica. Ávido em satisfazer a curiosidade, peguei na caixa com inúmeros cartões, descrevendo paisagens lindas de todo o mundo, e passei a ver os canais de Veneza, a Praça de São Marcos, carruagens puxadas a cavalos em Londres, pessoas vestidas de formas estranhas, montanhas cheias de neve, palácios, castelos e o dia a dia de muitas cidades, tudo numa cor sépia que me seduzia de forma particular. Na altura já eram muito antigas. Passava horas a tentar focar as duas imagens numa só e a deliciar-me com viagens ao passado. Aprendi os nomes de muitos monumentos, de cidades e de outros aspectos que, ainda hoje, me afloram à mente, sempre naquela suave cor sépia. E ainda não sabia ler.
De todas as imagens houve uma que me seduziu, e continua a seduzir; a imagem de uma estátua feminina sentada em cima de uma rocha com o mar em redor. Chamou-me a atenção o facto de a partir dos joelhos para baixo, apresentar algo semelhante a uma cauda de peixe. Como é possível? Tão perfeita e sem pés! Deformada e com ar triste. Perguntei logo o que é que tinha acontecido à senhora. Disseram-me que era mesmo assim. – Assim como? Assim não pode andar! – Pois não! Mas ela não anda. É uma sereia e as sereias só andam na água. – Sereia?! Mas o que é uma sereia? Responderam-me que era um ser vivo metade mulher e metade peixe que vivia no mar. A partir daqui o interrogatório foi contínuo, pois quis saber tudo. Onde é que moravam, o que faziam, o que é que comiam, se já tinham visto alguma, se era possível trazer para casa, enfim tudo o que se possa imaginar. As respostas, invariavelmente, vinham de encontro às minhas preocupações, modeladas pelas expectativas que entretanto ia construindo. Fiquei extasiado com as sereias. Era raro o dia que eu não olhava para aquela estátua tão sedutora. É fácil de compreender que comecei a desejar ver uma. Imaginava tocar-lhe, acariciá-la e ouvir os seus cantos, que diziam ser maravilhosos, sem saber ainda da existência de Homero.
Na altura, como qualquer criança, cansava-me muito facilmente ao fim de algumas centenas de metros de marcha, sempre que ia contrariado ou quando me desviavam das minhas actividades lúdicas. Cansaço de malandro, que contrastava com a fúria inesgotável das jogatinas e brincadeiras. As idas do meu pai a uma fazenda, que se encontrava praticamente a uma légua de distância, eram verdadeiros tormentos. Tinha que ir a pé, e no Verão o calor destruía a pouca vontade existente. A alternativa era saltar para os ombros e, às cavalitas, lá ia calcorreando o percurso. Cavalgar assim era confortável para mim, mas o mesmo não posso dizer do cavalgado que tudo fazia para não penar a distância com aqueles quilitos suplementares. A estratégia que adoptava era sempre a mesma; levar-me a um sítio onde se encontrava algo que desejava. Desta feita, sabendo da minha paixão pelas sereias, convenceu-me que na fazenda, onde havia uma mina de água que a nutria, deveria haver uma sereia. Ao princípio fiquei admirado, porque pensava que só haviam nos mares. Mas contrapôs-me que, tal como os peixes, também haviam sereias de água doce, só que eram muito mais pequeninas... (Continua no Quarto da República).
Sendo assim, "publico" um conto que escrevi no Natal para os meus três netos, que ainda não sabem ler... Uma prendinha adiada.
Para a Mariana, João António e Maria Leonor
Ainda não teria seis anos, quando, ao vasculhar, com a típica curiosidade infantil, o sótão lá de casa, deparei-me com um velho aparelho com duas lentes que permitia observar cartões cada um deles com duas fotografias antigas, “perfeitamente” iguais. Intrigado, lá me explicaram como deveria utilizá-lo. Colocava o cartão no suporte e, depois, aproximava ou afastava, mirando-o através das lentes. De repente emiti um ahah, quando as duas fotografias se transformaram numa imagem única com profundidade e volume. Foi a minha primeira percepção estereoscópica. Ávido em satisfazer a curiosidade, peguei na caixa com inúmeros cartões, descrevendo paisagens lindas de todo o mundo, e passei a ver os canais de Veneza, a Praça de São Marcos, carruagens puxadas a cavalos em Londres, pessoas vestidas de formas estranhas, montanhas cheias de neve, palácios, castelos e o dia a dia de muitas cidades, tudo numa cor sépia que me seduzia de forma particular. Na altura já eram muito antigas. Passava horas a tentar focar as duas imagens numa só e a deliciar-me com viagens ao passado. Aprendi os nomes de muitos monumentos, de cidades e de outros aspectos que, ainda hoje, me afloram à mente, sempre naquela suave cor sépia. E ainda não sabia ler.
De todas as imagens houve uma que me seduziu, e continua a seduzir; a imagem de uma estátua feminina sentada em cima de uma rocha com o mar em redor. Chamou-me a atenção o facto de a partir dos joelhos para baixo, apresentar algo semelhante a uma cauda de peixe. Como é possível? Tão perfeita e sem pés! Deformada e com ar triste. Perguntei logo o que é que tinha acontecido à senhora. Disseram-me que era mesmo assim. – Assim como? Assim não pode andar! – Pois não! Mas ela não anda. É uma sereia e as sereias só andam na água. – Sereia?! Mas o que é uma sereia? Responderam-me que era um ser vivo metade mulher e metade peixe que vivia no mar. A partir daqui o interrogatório foi contínuo, pois quis saber tudo. Onde é que moravam, o que faziam, o que é que comiam, se já tinham visto alguma, se era possível trazer para casa, enfim tudo o que se possa imaginar. As respostas, invariavelmente, vinham de encontro às minhas preocupações, modeladas pelas expectativas que entretanto ia construindo. Fiquei extasiado com as sereias. Era raro o dia que eu não olhava para aquela estátua tão sedutora. É fácil de compreender que comecei a desejar ver uma. Imaginava tocar-lhe, acariciá-la e ouvir os seus cantos, que diziam ser maravilhosos, sem saber ainda da existência de Homero.
Na altura, como qualquer criança, cansava-me muito facilmente ao fim de algumas centenas de metros de marcha, sempre que ia contrariado ou quando me desviavam das minhas actividades lúdicas. Cansaço de malandro, que contrastava com a fúria inesgotável das jogatinas e brincadeiras. As idas do meu pai a uma fazenda, que se encontrava praticamente a uma légua de distância, eram verdadeiros tormentos. Tinha que ir a pé, e no Verão o calor destruía a pouca vontade existente. A alternativa era saltar para os ombros e, às cavalitas, lá ia calcorreando o percurso. Cavalgar assim era confortável para mim, mas o mesmo não posso dizer do cavalgado que tudo fazia para não penar a distância com aqueles quilitos suplementares. A estratégia que adoptava era sempre a mesma; levar-me a um sítio onde se encontrava algo que desejava. Desta feita, sabendo da minha paixão pelas sereias, convenceu-me que na fazenda, onde havia uma mina de água que a nutria, deveria haver uma sereia. Ao princípio fiquei admirado, porque pensava que só haviam nos mares. Mas contrapôs-me que, tal como os peixes, também haviam sereias de água doce, só que eram muito mais pequeninas... (Continua no Quarto da República).
Eu me aparto de vós, Ninfas do Tejo,
ResponderEliminarquando menos temia esta partida;
e, se minha alma vai entristecida,
nos olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas esperanças, mal sobejo,
vontade, que a Razão leva vencida,
asinha darão fim à triste vida,
se vos não torno a ver como desejo.
Nunca a noite, entretanto, nunca o dia
verá de mi partir vossa lembrança;
Amor, que vai comigo, o certifica.
Por mais que na tornada haja tardança,
sempre me farão triste companhia
saudades do bem que em vós me fica.
" Eu me aparto de vós, Ninfas do Tejo" canto I de "Os Lusíadas" De: Luis Vaz de Camões
Este encantado conto, enternece tambem aos adultos e, merece que seja feito um especial agradecimento à Drª Suzana. Diz o povo e com razão «quem não roga, não ouve Deus»
Só mais duas notinhas, desculpem. Num local por onde passo frequentemente, encontram-se expostas várias fotografias de diferentes épocas do nosso Presidente da República e... não é que uma delas, é precisamente do Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva, ainda jovem, ao lado da estátua que representa a pequena sereia de Hans Christian Andersen!?
Não é tudo, não, o Senhor Presidente, com um ar muito sorridente (não estou nada a brincar, é vardadíssima) encontra-se com o braço direito sobre a rocha e a mão em que termina o braço pousada sobre a perna da sereia.
Ora toma! Que é para aqueles que lhe chamam um sonso, aprenderem.
;)))
Espero que o Sr. Presidente, homem declaradamente utilizador das tecnologias informáticas, não visite o 4R!!!
Apesar de esse evento ser uma grande honra para este espaço.
Adiante.
a outra notinha, trata-se de uma curiosidade. Ha algum tempo, passeava pelas praias de Lourinhã, Peniche, etc, e comprei um livro.
Era uma edição conjunta da câmara e de região de turismo.
Naquele livro contava-se a origem dos forais e a constituição das terras dos vizinhos, dos morgadios etc. Falava-se tambem de uma petição que a popolação da Lourinhã enviou ao Rei, rogando-lhe que fizesse alguma coisa que solocionasse o problema que constituíam as sereias que proliferavam nas enseadas e grutas daquela costa e que lhes encantavam os maridos, fazendo com que se somissem.
Acho que o caro professor teve muita sorte, talvez por ainda ser tão pequenino, se fosse hoje já viu!?
A esta hora estaria "encafuado" numa tenebrosa, fria e humida mina de água a escutar o canto mil vezes repetido de uma sereia... acha que esse canto ainda o encantaria?
;))))
Obrigada, caro amigo,por crer que terá sempre em mim um público encantado! Adorei a sua história e o desenho também, aguçou-me a expectativa de também vir a merecer essa distinção, lá vou trabalhando nisso...
ResponderEliminarO seu conto começa logo de uma maneira que me despertou uma recordação, é que em casa do meu pai havia uma máquina dessa, era para ver slides, uns rectângulos de cartão que faziam a esquadria da foto e esta aparecia duas vezes, simetricamente. O meu pai tinha uma máquina de fotografar em forma de slide, era um complemento que se punha na máquina, depois nessa espécie de binóculo nós víamos e revíamos as fotografias em relevo. Mais tarde apareceu um briquedo desses comuns discos onde rodavam histórias infantis, cada um podia ver na máquina a história completa. Muito, mas muito mais tarde, apareceram os projectores de slides e então recuperámos as nossas preciosidade e já podíamos vê-las em tamanho grande, projectadas na parede branca. Ainda temos isso tudo, guardado em caixas em casa dos meus pais, deu-me umas enormes saudades de ir lá buscar e rever tudo!
Quanto à sereia, as infâncias felizes têm sempre uma sereia, esse fascínio pela beleza que não se alcança, pelas profundezas do mar, pelos segredos que acreditamos poder captar e guardar só para nós. Li a história da Pequena Sereia, de C. Andersen, com a minha irmã, que ainda lia muito devagar e parava nas partes mais tristes, será que ela troca a cauda brilhante por uns pés, só para ir ter com o Princípe? Mas a sua história é ainda mais bonita. E parabéns à ilustradora, é uma artista!Conte mais...
Eis uma das razões porque vale a pena manter esrte espaço e visitá-lo. Faz-nos bem...
ResponderEliminarnuss que xato
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