Continuando. O Sr. Manuel Sapateiro nunca começava e acabava um par de sapatos, botas ou chinelos. Tinha sempre uma boa quantidade de artigos em curso de fabrico. À distância, não posso deixar de concluir que se tratava de uma estratégia de marketing, para impressionar os clientes e desculpar atrasos com base no muito trabalho. Mas, para compreender devidamente o processo produtivo do Sr. Manuel, tenho que fazer outro parêntesis, para revelar traços essenciais da sua personalidade. Para além da confecção de sapatos, a que se dedicava por necessidade, o Sr. Manuel, um auto-didata, dedicava-se por gosto à leitura, e desenvolvia a actividade complementar de ser o correspondente na terra não só dos jornais regionais, mas do grande jornal O Século, entretanto desaparecido. Factos só por si capazes de lhe dar uma importância acrescida à que derivava de calçar o pessoal segundo os últimos catálogos da moda. Porque o Sr. Manuel, para além de criar, também trabalhava por catálogo.
Na sua função de correspondente dos jornais locais, não lhe escapava nascimento, baptizado, morte, exéquias, simples ou com ofícios, ou missa cantada com procissão solene e nome do pregador. Assim como os nomes dos mordomos. E a descrição científica da toponímica local, história do orago da freguesia ou as particularidades geológicas ou “monumentais” de qualquer lugar. E fazia investigação sobre o "castelo dos mouros", um penedo onde era suposto estar escondido um enorme tesouro. Quando algum autóctone chegava de Lisboa, ou do Porto ou de África e desconhecia qualquer acontecimento, desculpava-se de imediato o interlocutor: pois é, o Manuel não pôs no jornal… Mas também havia a crítica: não sabias? Mas o Manuel pôs isso no jornal…
Então, quando compreendi estas conversas, comecei a imaginar como importante era o Sr. Manuel Sapateiro, pois era ele que punha ou não punha as pessoas nos jornais. E se já muito o estimava por razões que depois revelarei, a consideração por ele tornou-se ainda maior. Por esse mesmo facto, e também porque era filho da senhora professora, o Sr. Manuel, apesar de não ter atingido os dez anos, via em mim um interlocutor à altura. E contava-me as verdadeiras agruras que passava com o correspondente do jornal rival, Diário de Notícias. É que para O Século não podia mandar notícias de nascimentos e procissões, mas tinha que seleccionar outro tipo de acontecimentos, como desastres, ou fotografias de culturas insólitas, género fenómenos do Entroncamento, que não estavam sempre ao colher da mão. A coisa era séria, pois que, se o DN publicasse uma notícia que não tivesse enviado a O Século, logo havia a reprimenda e a ameaça de substituição do correspondente. O que eu suspeitava como trágico, ao vê-lo levantar a cabeça, ao mesmo tempo que deixava cair a sovela: cortavam-me o jornal…
Bom, a confecção dos sapatos ficará para próximo capítulo.
Na sua função de correspondente dos jornais locais, não lhe escapava nascimento, baptizado, morte, exéquias, simples ou com ofícios, ou missa cantada com procissão solene e nome do pregador. Assim como os nomes dos mordomos. E a descrição científica da toponímica local, história do orago da freguesia ou as particularidades geológicas ou “monumentais” de qualquer lugar. E fazia investigação sobre o "castelo dos mouros", um penedo onde era suposto estar escondido um enorme tesouro. Quando algum autóctone chegava de Lisboa, ou do Porto ou de África e desconhecia qualquer acontecimento, desculpava-se de imediato o interlocutor: pois é, o Manuel não pôs no jornal… Mas também havia a crítica: não sabias? Mas o Manuel pôs isso no jornal…
Então, quando compreendi estas conversas, comecei a imaginar como importante era o Sr. Manuel Sapateiro, pois era ele que punha ou não punha as pessoas nos jornais. E se já muito o estimava por razões que depois revelarei, a consideração por ele tornou-se ainda maior. Por esse mesmo facto, e também porque era filho da senhora professora, o Sr. Manuel, apesar de não ter atingido os dez anos, via em mim um interlocutor à altura. E contava-me as verdadeiras agruras que passava com o correspondente do jornal rival, Diário de Notícias. É que para O Século não podia mandar notícias de nascimentos e procissões, mas tinha que seleccionar outro tipo de acontecimentos, como desastres, ou fotografias de culturas insólitas, género fenómenos do Entroncamento, que não estavam sempre ao colher da mão. A coisa era séria, pois que, se o DN publicasse uma notícia que não tivesse enviado a O Século, logo havia a reprimenda e a ameaça de substituição do correspondente. O que eu suspeitava como trágico, ao vê-lo levantar a cabeça, ao mesmo tempo que deixava cair a sovela: cortavam-me o jornal…
Bom, a confecção dos sapatos ficará para próximo capítulo.
Caro Dr. Pinho Cardão, só por curiosidade, o "seu" sapateiro, o Sr. Manuel, não tinha o apelido de Bandarra?
ResponderEliminar;)
Bem merecia, podia não ter inclinação para profetizar, mas temia o futuro, ou pelo menos, o infortunio que pudesse chegar-lhe à boleia do futuro. Homem avisado, o Sr. Manuel.
;)
Bem lembrado o Bandarra, caro Bartolomeu, mas o sr. Manuel era um jornalista a aprender a lidar com os segredos da concorrência enquanto deitava solas nos sapatos, eram duas artes paralelas e complementares porque as conversas com os clientes sempre haviam de lhe fornecer muita matéria redactorial. Se fosse hoje, fazia um artigo para um e outro a dizer o contrário para o outro, garantindo as vendas de ambos com a polémica assim gerada...
ResponderEliminarCaro Bartolomeu:
ResponderEliminarNão,não era Bandarra, nem no nome nem na arte.
O Sr. Manuel era um positivista; referia o que via, não previa nem inventava.
Cara Suzana:
Se fosse hoje, nunca se sabe...Mas não creio. O Sr. Manuel fazia sapataria perfeita e jornalismo sério!...
Não fosse dar-se o caso de o Sr. Manuel ser um Dragão dos quatro costados (como se constata ali mais adiante) e poderíamos perfeitamente aceitar como muito provável esse "tráfico de informação de que a Drª Suzana, "profetiza".
ResponderEliminar;)