quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A lei, esse conveniente alibi

A sessão solene que assinala o início do ano judicial ocorre em fins de Janeiro. Pensar-se-ia que o ciclo anual da justiça começa em Setembro após as férias judiciais. Ou mesmo no princípio do ano civil. Não. Ocorre quando a agenda dos actores determina, atrasando-se em relação a estes marcos sem outra curial explicação. Este facto simbolicamente retrata, a par da rotina da cerimónia, o desfasamento no tempo e no modo da justiça nacional.
Mas não é o desfasamento no tempo a causa do mal. É somente uma das consequências de um sistema completamente disfuncional, que tem origens tão conhecidas como dificilmente assumidas por quem tinha o dever de as assumir primeiro.
Ouço o Senhor Presidente da República, uma vez mais, condenar a má qualidade das leis. Com toda a razão. A intervenção de um vice-presidente da bancada parlamentar do PS que procurou menorizar a intervenção teve aliás o condão de tornar mais evidentes algumas responsabilidades denunciadas na mensagem presidencial, uma vez que a cabeça do deputado se mostrou pequena para tão grande carapuça...
Mas se a desgraça da má qualidade das leis é um facto – que começa na hemorragia legislativa a que nenhum poder resiste… - a verdade é que a lei se tornou o álibi para todo e qualquer problema, em especial, todo e qualquer problema da justiça.
Infelizmente os problemas da justiça não se resumem às más leis ou às deficiências do nosso ordenamento jurídico, que são de facto muitas e graves. Com são muitas e graves, e discutidas no mesmo tom, as questões que a este nível se colocam em Espanha, em França, na Alemanha, no seio da União Europeia, aliás o centro produtor do pior Direito que por estes dias nos condiciona. Os problemas da justiça assentam sobretudo na má aplicação da lei, quando não se devem à omissão de aplicação da lei que existe.
Há muito tempo que o legislador sábio pressupôs a incompetência provável de alguns membros da sua família e apresentou solução para a má lei. A solução está na confiança em que o sistema venha gerar aplicadores competentes da lei, que compensem as deficiências na formulação das normas ou até as opções políticas vertidas em lei que se mostrem incongruentes do ponto de vista sistémico. A solução encontra-se num pequeno conjunto de normas – como se diz agora, estruturantes – do Código Civil (artigos 5º a 13º) mas em especial no artigo 9º, que reza assim sobre como se deve interpretar (aplicar) a lei:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Não cabem, nem verdadeiramente interessam neste apontamento, as teorias que a propósito da essência desta norma se elaboraram ao longo do tempo. Para quem, como eu, faz desta escrita um exercício de catarse, esta nota é talvez uma reacção ao facto de todos os anos, numa rotina mais aborrecida e desinteressante que alguns dos inúteis rituais da nossa justiça, ouvir em tom solene sempre o mesmo, dito sempre pelos mesmos, no mesmo tom e com a cínica consciência de que o que se disse nada resolve mas tem de ser dito para que da próxima haja razão para de novo o dizer.
O que fica por dizer, isso sim é decisivo mas não se vê quem com autoridade o afirme. É que na raiz do problema está o facto de no sistema rarear quem saiba medir o alcance de normas como as do artigo 9º do velho Código. Raiz que se estende às escolas de Direito que, como infelizmente me apercebo todos os dias, perderam o orgulho de bem formar, preferindo acentuar a vertente negocial do ensino; e nas instituições da Justiça – leia-se, nos profissionais do Direito que as constituem – que se encarregam de deformar os que ainda se apresentam com talento e conhecimento para contribuir para a boa administração da Justiça e assim dar utilidade à lei, deformação deliberada e quase sempre em nome de interesses da corporação a que pertencem, mas não raro para disfarce da angustiante impreparação ética, científica e técnica com que actuam.
Desabafei. Mas não me sinto melhor.

3 comentários:

  1. Caro Drº Ferreira de Almeida:
    Eu que não sou jurista, compreendo-o muito bem!…
    Tem razão, é sempre o mesmo, um déjàvu ano após ano, toda a gente o sabe excepto os próprios intervenientes. Por isso desabafe à vontade, no que me diz respeito,estou aqui para o escutar.

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  2. José Mário
    Mas o funcionamento da justiça não está dependente das autoridades que discursam? É que qualquer dia a culpa do estado a que chegou a justiça é dos cidadãos!

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  3. Sábias e opotunas palavras as suas, cao Ferreira de Almeida.
    Deveria enviá-las já ao Ministério Público, ao Conselho Superior da Magistratura, ao Bastonário, aos Sindicatos dos Juízes e Magistrados, ao Centro de Estudos judiciários, ao Ministério da Justiça, às Faculdades de Direito,
    PARA VER SE APRENDIAM ALGUMA COISA!...

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