Sábado de manhã. Os sinos tocam a finados perturbando a beleza de um sol arredio e a tranquilidade de um curto repouso. – Quem terá morrido? Olho, instintivamente, para o outro lado da praça na esperança de ver os anúncios da morte. Dois! Aproximo-me e fico surpreendido. Sempre que conheço alguém, seja qual for a sua idade, a morte, mesmo que anunciada, causa-me uma certa surpresa e um profundo mal-estar, porque não consigo imaginar que venha a acontecer. Mas tem que acontecer.
Conhecia perfeitamente um dos dois. Quanto à outra, o nome dizia-me qualquer coisa, mas não consegui identificar quem era, até que, durante a tarde, me disseram quem era. Foi então que uma sucessão de pensamentos começou a percorrer o meu córtex frontal. De súbito, senti o cheiro do petróleo misturado com o ar adocicado do armazém, ambos dominados pelo forte aroma libertado pelos bacalhaus salgados pendurados das traves do armazém, a lembrar as flores de papel dos arraiais populares. Gostava de cheirar aquela estranha mistura, inconfundível, de uma forma de comércio que em tempos caracterizava as pequenas comunidades. Ao odor típico do espaço comercial associei o sabor das pequenas lascas de bacalhau, que, amavelmente, a dona concedia a pedido, ou que surripiava sem que visse. Chupava aqueles pedaços com um prazer difícil de explicar. Estas lembranças originaram, ato contínuo, a criação de um roteiro de cheiros e aromas que poderia identificar com os olhos fechados. Ao sair de casa, o cheiro característico da serradura da fábrica dava-me os bons dias. Ao passar pelo Costa levava nas ventas com a erupção típica de uma taverna, que quase dispensava o loureiro. Mais abaixo, a padaria anunciava a sua presença inundando-me do sabor a pão fresco, para logo a seguir levar com uma corrente de ar a cheirar a álcool proveniente da barbearia de portas abertas. Bastava dar meia dúzia de passos e o cheiro a colas marcava o território do sapateiro que, rapidamente, dava lugar aos odores nauseabundos e agressivos do talho. Passava à velocidade da luz na ânsia de me acalmar, aspirando os aromas adocicados da farmácia vizinha em que os perfumes imperavam. Mais à frente, salivava com as invisíveis nuvens de prazer provenientes da torrefação do café ou dos amendoins, ao ponto de a roupa ficar impregnada para todo o dia. Aqui, invariavelmente, parava durante algum tempo. Ao passar pela Fornecedora não ligava aos aromas que as farinhas se entretinham a libertar dos sacos acumulados, a não ser nos dias em que a torrefação não funcionava. Do outro lado da rua, além do cheiro típico da petroleira, o suor das mulas e dos cavalos, e os excrementos dos animais, que iam ao ferrador, não causavam grande asco. Às tantas deveria ser um mero efeito da queima do carvão e do calor provenientes das forjas do meu primo Porrudo, situado praticamente em frente. Ao passar pela Estação, o cheiro a creosote usado nas travessas estimulava os sentidos. De todos, o que mais me seduzia era o sensual cheiro a café de saco que inundava o pequeno jardim proveniente do “Zé do Café”. Um cheiro inconfundível que se perpetuava noite e dia. Na própria gare, o cheiro à cola de trigo entremeava-se com o aroma de laranjas do vendedor Humberto. Ao lado, antes de chegar aos sanitários, lançavam, frequentemente, num pequeno tanque, restos do carbureto que, em contacto com a água, libertava o gás que tinha o condão de penetrar profundamente no nariz ao ponto de me provocar dores, conseguindo, deste modo, reduzir a desagradável sensação olfativa do mijo em decomposição. Acelerava o passo, ou melhor, corria para chegar ao jardim florido que, discretamente, perfumava os sentidos. Quando ia à vila, passava por uma tasca onde os aromas acumulados de vinho impregnavam tanto as madeiras das habitações como os paralelepípedos da rua. Se fosse pela calçada, o armazém de sal, fonte de uma secura fria e sepulcral, incomodava-me sobremaneira. Logo a seguir, passava pela fábrica de sabão que lançava as escorrências a céu aberto, obrigando-me a saltar os carreiros azulados e apontar o nariz para a resineira na esperança de aspirar os vapores inebriantes do pez. Ao descer a calçada romana retardava o passo para desfrutar a tranquilidade dos aromas das mimosas que desapareciam a meio da ponte. Neste local, aspirava longa e profundamente a frescura e o cheiro único da água doce do rio, capaz de limpar todos os cheiros e até os fedores emanantes de muitas almas. Na subida, regressavam os aromas das mimosas, substituído pelas fragrâncias das flores dos campos e dos jardins anunciadores da chegada à vila. Nesta, tinha que passar pela praça onde o cheiro a peixe conseguia reinar sobre quaisquer outros. Até as pedras não conseguiam libertar-se de tão desagradável fedor.
Cheiros? Muitos! Mesmo muitos, ao ponto de conseguir desenhar mapas com base nos mesmos. Mapas geográficos, mapas de sentimentos, mapas de angústias, mapas de desejos, mapas de tristeza e de alegria. Mapas de vida.
O que seria da vida, e da memória, se não fossem os cheiros e aromas? Uma sensaboria.
A leitura de uma morte foi suficiente para estimular um roteiro de diferentes odores. É pena que a escrita não consiga libertá-los. Talvez a leitura consiga....
Cheiros? Muitos! Mesmo muitos, ao ponto de conseguir desenhar mapas com base nos mesmos. Mapas geográficos, mapas de sentimentos, mapas de angústias, mapas de desejos, mapas de tristeza e de alegria. Mapas de vida.
O que seria da vida, e da memória, se não fossem os cheiros e aromas? Uma sensaboria.
A leitura de uma morte foi suficiente para estimular um roteiro de diferentes odores. É pena que a escrita não consiga libertá-los. Talvez a leitura consiga....
E quem foi o autor da morte de tão caros e saudoso cheiros...?
ResponderEliminarQuem fechou esse manancial que parecia eterno e que talvez por isso, se mantem tão vivo nas memórias?
Quem quebrou a regra da economia rural, que possibilitava a cada um retirar da terra o sustento, numa maravilhosa harmonia de toma-lá-dá-cá e a trocou por algo fedorento, aberrante e tóxico, chamado capitalismo?
3 perguntas para as quais nunca encontraremos a resposta, caro Professor Massano Cardoso.
Curioso, meu caro Professor. Ainda há dias, em conversa já não sei bem com quem, dizia eu que mais do que com a visão era capaz de traçar um mapa de odores do velho bairro de Campo de Ourique para onde vinha passar férias em casa do meu avô materno. O cheiro intenso do café que se escapava da leitaria ali ao pé da praça de táxis; o da fruta na mercearia da esquina; o cheiro matinal do pão quente. O do metal libertado pelos carros eléctricos...
ResponderEliminarOs sentidos, agora, convocam nostalgias...
Acho que foi Sócrates que era de opinião de que os odores indicavam em que classe social as pessoas estavam inseridas. Não confirmei. Mas estou a referir-me ao “grego”. É que hoje praticamente só oiço falar em Sócrates, o português, e fico toda baralhada... daí atribuir a “Sócrates” qualquer pensamento ou ideologia... : )
ResponderEliminarSe foi ele... essa ideia já foi ultrapassada há muito. Por se usar um “Tiffany” , “Dolce & Gabbana” ou “Coco Chanel” não indica, necessariamente, uma classe social... indica, sim, bom gosto! : )
Esse “Roteiro de Cheiros” fazem-me recordar tantas situações semelhantes.. o cheiro a terra molhada, o cheiro dos pomares... E o agradável odor dos bebés? Haverá cheiro mais agradável que esse?
E muito mais teria o caro Prof. para escrever sob o ponto de vista científico...
Gostei do texto.
Caro Professor Massano Cardoso:
ResponderEliminarTenho dúvida que esta leitura consiga libertar-nos do “roteiro de diferentes odores”, afinal de contas comum a todos nós, a uns mais a outros menos, dependendo da sensibilidade de cada um, mas todos temos registos de odores gravados desde a infância (alguns até, abafados bem lá no fundo…) que, curiosamente, este tema escrito num momento de tristeza, a morte de alguém conhecido é sempre motivo de reflexão sobre o quanto é efémera a nossa passagem pela vida, vem convidar-nos, sem convite, a fazermos um percurso que não tínhamos planeado…
Muito interessante, sem dúvida, voltar atrás impelido pela busca de odores…
Caro JM Ferreira de Almeida
ResponderEliminarQuando se referiu a Campo de Ourique, lembrei-me de uma rua onde vivi durante uma temporada: Rua Ferreira Borges! Quem sabe se não estivemos a tomar um carioca de limão (não gosto de bicas ! :)) no mesmo café, no mesmo dia, à mesma hora! Afinal... já chegámos à conclusão várias vezes que o mundo é pequeno e que acontecem muitas coincidências no decorrer da nossa vida.
Magnífico, este roteiro de odores, alguns felizmente já desaparecidos a bem da saúde colectiva, outros só presentes na memória de quem conheceu de perto alguns ofícios que havia nos lugares. Uma verdadeira visita guiada!
ResponderEliminarQuem sabe, Catarina. Mais de 10 anos depois de ausência de Lisboa e de Campo de Ourique, fui levado áquela leitaria (justamente numa transversal à Rua Ferreira Borges) pelo meu instrutor de condução aquando das lições para a carta de condução. Descobri que o homem tinha sido nascido e criado porta com porta da casa de meu avô, Este mundo é mesmo um pequeno quintal.
ResponderEliminarÉ mesmo!
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