Encontrei-a este fim de semana quando fui dar uma volta a pé pela aldeia. Lá ia ela ao fundo da rua, enrolada num xaile e com uma camisola grossa à volta da cabeça, com as mangas a atar debaixo do queixo, porque ao fim da tarde já se fazia sentir um frio cortante, apesar de ter estado um dia lindo de sol. Agarrada à canadiana toda torta, o eterno saco de plástico pendurado no braço e a falar sozinha, D. Jesus seguia a caminho do casebre onde vive e onde há muito não havia sinais de vida.
Cumprimentei-a "então D. Jesus, disseram-me que esteve doente, anda aí ao frio?", olhou-me intrigada e é claro que não me reconheceu mas desatou logo a falar pelos cotovelos, muito contente por ter com quem conversar. Primeiro confirmou se eu era dali "ah, mora nesta casa, eu já não tenho cabeça de me lembrar de ninguém, mesmo da minha família, eles são tantos, a minha neta conhece, não é? pois venho da casa da 'nha filha, ela não me queria deixar mas eu abalei, a minha casa é segura" e continuou num desassossego a falar da vida dela, com a ansiedade de quem tem medo de não a ouvirem até ao fim.
- A Dona sabe, já tenho 86 anos, 86, niguém pensava que eu durasse tanto. Há dias foi o coveiro, eu comprei um gavetão, comprei pois, eu queria ter um gavetão, mas ele viu-me e foi logo "atão ti Maria, você já anda a abusar da greve, nunca mais morre, já vai duas vezes que tenho que limpar o gavetão, há tantos anos, e você nada!", mas eu não me fiquei e respondi-lhe "olhe, se está com muita pressa meta-se você lá dentre e deixe-se estar muito quieto, que eu não me importo de ficar cá fora...
E ria-se até ás lágrimas, a limpar os óculos embaciados, a lembrar-se da cara do coveiro a insistir, "danada de mulher, já abusa da greve..."
Ainda ouvi mais uma fiada de histórias, fiquei muito contente por ver que ela está muito decidida a continuar em greve à morte, aquela velha é uma resistente.
Resistente, prolixa e profana... hein (?!) arranjei aqui mais dois adjectivos para classificar a D. Jesus, com uma ligeireza capaz de envergonhar o mais eminente psicólogo da nossa praça.
ResponderEliminarNão admira... já me habituei a ser adjectivado de louco, com a mesma ligeireza, por quem tambem não me conhece... "cá se fazem... cá se pagam".
;))))
Olhe cara Drª. Suzana, gostei imenso do seu conto e da sua vizinha d'aldeia, que com a naturalidade e a genuínidade das gentes que vão assistindo aos ciclos da natureza, assim vão entendendo a própria vida.
Esperemos que entretanto o coveiro, não decida começar a cobrar à D. Jesus, despesas de condomínio e que as finanças não lhe apresentem nenhum imposto relativo à posse de uma propriedade... horizontal.
;))))
Olá Suzana. Este seu post, fez-me outro lembrar - de uma outra amiga :) - que aqui deixo para partilha http://www.etudogentemorta.com/2010/04/postais-do-tavora-iii-ao-sol-do-entardecer/
ResponderEliminarSeremos nós assim uma dia?
Caro Bartolomeu, receio bem que se alguém ouvir a sua ideia o próximo OE já traga prevista mais essa medida de combate ao defice. Com o envelhecimento da população esse imposto - só para o futuro, claro - seria uma fonte de receita segura, com a vantagem de ser sempre a aumentar independentemente da crise económica :)
ResponderEliminarCara ARB, realmente esse post é muito giro, as três velhotas são encantadoras, não sei se a D. Jesus me deixará tirar uma fotografia mas é menina para ficar toda satisfeita e até fazer pose!
Suzana
ResponderEliminarHabituei-me a ter um carinho especial pela D. Jesus. Folgo em saber que já não está acamada e recuperou. É realmente uma mulher de “ferro”, cheia de sabedoria. As amarguras da vida deram-lhe força para superar as dificuldades, sem perder a esperança.
A resposta do gavetão é fantástica. Tenho impressão que o gavetão ainda vai ter muito que esperar…
Suzana, a ARB falou-me há pouco deste seu post e enviou-me o link e eu vim logo espreitar. Achei uma graça infinita a esta grevista tão cheia de vida e de alegria como aquelas três que fotografei há dias e com as quais, não estivesse eu com um numeroso grupo familiar com várias crianças já muito irrequietas, de bom grado me teria sentado naqueles degraus ao sol a conversar e a rir. Não sei se alguma vez seremos assim. Sei, apenas, que gostaria...
ResponderEliminarMargarida, como a deixei preocupada com as últimas notícias que tinha tido sobre a nossa heroína agora lembrei-me logo que ia gostar de saber a actualização :)
ResponderEliminarOlá Joana, seja muito bem vinda aqui ao 4r, também gostei imenso do seu post e das lindas protagonistas da sua foto, compreendo bem o que diz dos jovens que protestaram com a sua iniciativa, as minhas filhas também resistiam imenso quando eu ficava a conversar com as minhas vizinhas da aldeia, uma vez quis dar uma boleia e elas ameaçaram sair do carro. Deixe lá que isso com o tempo passa-lhes e ainda os há-de ver de máquina na mão a fotografar velhinhas simpáticas sentadas a apanhar sol, tal e qual a viram fazer. Isso de observar os outros com carinho e curiosidade também se aprende :)