quinta-feira, 29 de julho de 2010

Dores de alma

Tarde muito quente. O ar abafado entrava na sala sem pedir licença transformando-a numa verdadeira sauna. Senti uma letargia a querer invadir-me, limitando as capacidades para examinar os trabalhadores. Um pouco de sacrifício foi a solução para ultrapassar as dificuldades. Sai um, entra outro, e a rotina acabou-se por instalar ao fim de alguns minutos, mas sempre com a fadiga estival a querer tolher-me a ação. A meio da tarde, entrou uma senhora com ar tranquilo e ao mesmo tempo perscrutador. Era a primeira vez que me via. Sentou-se. Após as formalidades, e algumas perguntas de ocasião, perguntei-lhe se andava bem de saúde. Fez um pequeno compasso de espera, respondendo que, dentro do possível, sim, andava. – Dentro do possível? Questionei-a, ao mesmo tempo que olhava para uns olhos claros que, em tempos, deveriam ter sido azuis, mas onde agora brilhava uma tristeza cinzenta daquelas que a alma nunca consegue despejar, porque toda ela é feita de dor e o que é feito de dor nunca consegue ser totalmente apagado. Já os conheço. Olham para uma pessoa, timidamente, tentando ver até que ponto podem contar os seus problemas. Sabem como obter um alívio temporário, mas para isso é preciso encontrar alguém que, silenciosamente, beba as dores da sua alma. Olhou-me com muita serenidade e, passados brevíssimos segundos, conta-me a história, ou melhor, as histórias. Primeiro a de um filho, que tirou um curso de cariz técnico tendo conseguido um emprego altamente qualificado. As exigências técnicas e as responsabilidades decorrentes – bastava um pequeno erro para originar problemas muito sérios -, levou-o, ao fim de alguns anos, a descompensar psiquicamente, ponto de partida para o alcoolismo e a toxicomania. O marido alcoolizou-se ao ponto de, ainda novo, estar com graves sinais de demência. Os pais, idosos e com dificuldades em matéria de autossuficiência, tiveram de ser institucionalizados e sempre que os vai ver pedem-lhe para os tirar do lar. Estes são os protagonistas, porque as histórias de dor e de sofrimento dão para múltiplos argumentos e encenações. Contou-as com discrição, sem queixume e com voz suave, vendo-se o efeito libertador da palavra. Apanhado meio desprevenido, com a esferográfica na mão como a tentar registar no espaço os diversos acontecimentos que ia relatando, fiquei preso da sua narrativa. Senti-me como um homem estátua, prestes a escrever mas sem conseguir mover os músculos, olhando-a quase sem pestanejar, enquanto tentava recriar mentalmente as figuras e as cenas como se fosse um realizador de cinema. Ao mesmo tempo congeminava sobre os diferentes problemas que incomodam a alma das pessoas. Comparando-os com os que ouvia pareciam-me irrisórios, patéticos e até algo mesquinhos.
No fim, como se fosse uma garrafa de champanhe, deu-se a explosão silenciosa de um gás desejoso de liberdade. Um alívio anestesiante. Agradeceu imenso por a ter ouvido, porque há coisas que não se podem dizer a ninguém. Pediu-me desculpa por ter tomado o meu tempo ao contar-me estes episódios da sua vida sintetizada em poucos minutos. Não me lembro de lhe ter dito nada. Olhei-a com respeito e admiração e continuei o exame, libertando-me da posição de homem estátua...

8 comentários:

  1. Belo retrato, caro Professor!

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  2. Anónimo22:52

    Isso mesmo. Um retrato belissimo, feito de palavras e sensações. É um privilégio partilhar deste espaço...

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  3. Completamente de acordo com os ilustres comentadores que me antecedem. Gostaria apenas de acrescentar que esta atitude de resignação perante tão graves vicissitudes da vida é, de certa forma, uma caraterística do nosso povo mais genuíno que com toda a desgraça do mundo sobre os ombros, quando lhe perguntam como vai a vida responde:- "vai indo como Deus quer..."

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  4. As grades de espuma que aprisionam a alma das pessoas, podem ser desfeitas?
    Ha quem possua o "dom" de saber, ou ser impelido a, dispensar o sorriso cúmplice, a frase... mágica, a cumplicidade ígnea, que irá fazer com que uma alma amargurada, reencontre o sentido da sua existência.
    Quem sabe... nesse dia, o destino conduziu essa mulher, triste, de olhar claro mas sofredor, à presença daquele homem que bebe da mata do Buçaco a serenidade de espírito que lhe permite saber escutar, feito "Homem-Estátua"?
    Quem sabe, o alívio que essa mulher sentiu no coração, lhe irá renovar as forças que lhe permitam encarar de novo a realidade com mais força e esperança no futuro?
    Façamos votos que sim!

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  5. Não posso deixar de comentar...mas antes de o fazer, estou a recordar-me de um comentário que o caro Pinho Cardão fez noutro post relativamente às suas crónicas de viagem (perante a minha insistência!): “Para fazer descansar os leitores da tortura das minhas prosas...” , o que me fez agora pensar: será que alguns dos meus comentários ou a assiduidade com que comento torturam alguém?!
    Em caso afirmativo : ( , qualquer post do caro Prof. é o espaço ideal para o fazer.. não que a minha intenção seja torturar seja quem for, evidentemente! É que ser-se um bom médico, um bom advogado ou um bom escritor não é apenas ser-se detentor de grandes conhecimentos na sua área de trabalho, é sim saber ouvir, saber comunicar, saber falar com e não para uma pessoa e, acima de tudo, saber inspirar confiança. E são essas características – a meu ver – que mais podem auxiliar outra pessoa num momento de desespero, num instante em que o peso das preocupações, do sofrimento é quase insuportável e quando o desabafo se torna na única forma de alívio temporário.

    Posto isto, estou em crer que o caro Prof. terá sempre paciência para ler os meus comentários por muito absurdos que sejam!

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  6. Um homem estátua com o coração aberto para ouvir os outros e um dom muito especial para nos fazer ouvir também.

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  7. "Servindo-me" das palavras deleitosas do Dr.Bartolomeu, continua a beber da mata do Buçaco a tal "serenidade de espírito"...precisamos todos muito dela! :)

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  8. Amen, Ilda Massano!
    Sabíeis que; a palavra "Amen" que no Cristianismo significa afirmação, concordância, ou ambas, em simultâneo, tem a sua origem no antigo Egipto, no culto ao deus Ámon? Ámon, na mitologia egípcia, era frequentemente associado ao deus Rá, originando Ámon-Rá, o deus que traz a vida e o sol.
    Não é frequente, mas ainda vai sendo possível encontrar nos caminhos das nossas vidas,uns herdeiros de Ámon-Rá, que singelamente, e sem grandes alaridos, vão oferecendo aos corações destroçados, a luz que lhes renova o ânimo para continuar a odisseia do seu cumprimento pessoal.

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