Aprender é um prazer, mas quando os mais jovens nos ensinam, dando verdadeiras lições, então o prazer duplica. Por esta razão, simples, e a propósito de coisas simples – um pouco de filosofia pré socrática, mais propriamente de Anaximandro – uma aluna minha, não médica, levou-me a escrever este texto. Uma forma de lhe agradecer alguns desafios da arte de pensar...
Para a Jeune Dame de Jazz
Para a Jeune Dame de Jazz
O seu maior sonho era aprender a contar, a contar números grandes, grandes como o mundo, saber quantas formigas havia dentro daquele buraquito por onde entravam e saíam, poder passar a tarde no rio a contar as pequeninas e fascinantes pedrinhas redondas e também as estrelas do céu, embora lhe tivessem dito que não as devia contar porque provocava cravos, coisa que não lhe metia medo.
E começou a contar antes de aprender a ler e a escrever. A princípio até dez, depois, com um pouco mais de dificuldade, chegou aos vinte e a partir daqui verificou que a cantilena era sempre a mesma, passando aos trinta, quarenta, cinquenta e assim sucessivamente até aos cem. Quando chegou aqui sentiu uma satisfação difícil de explicar, ao ponto de dizer, muito orgulhoso, sempre que lhe perguntavam: - Já sabes contar? – Sei sim senhor, até cem! A forma como pronunciava o “cem” era única, porque estava perante um número muito grande, um número mágico, uma prova de que era sabedor.
Muitas vezes contava alto, outras contava só para si, dentro da cabeça, mas cantava sempre; uma música muito harmoniosa e que “batia” sempre bem, terminando em um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e depois rematava com os “entas” após ter ultrapassado o “dez” e o “vinte”. Os “entas” eram entoados como sendo fins de linhas, períodos que duravam um a dois segundos, o tempo suficiente para absorver uma boa fatia de ar para ir até à próxima sequência. Quando chegava aos cem fazia uma pausa maior, profunda, devido ao cansaço. Mas era uma satisfação. Cem!
Com o tempo verificou que as sequências dos “entas”, depois do dez e do vinte, tinham um equivalente nos cem, duzentos, trezentos e assim sucessivamente até chegar aos mil. Mil! Mil era coisa de adultos e o menino sentia-se muito feliz, mas custava chegar lá. Demorava muito tempo, mas conseguia. E depois do mil? Depois vinha dois mil, três mil, quatro mil e assim sucessivamente até que de repente começou a pensar que poderia contar sem parar. Chegado a este ponto perguntou aos mais velhos: - Até onde se pode contar? Qual é o maior número? Não lhe responderam, mas fizeram-lhe a seguinte pergunta: - O que é que tu achas? O menino pensou, pensou e depois disse: - Não tem fim! Como é possível não ter fim? Quando é que podemos acabar de contar? Riam-se e não davam respostas. Foi um novo conceito que lhe surgiu na sua cabecita e que o incomodou. Uma pergunta tão simples para a qual ninguém sabia a resposta. Uma coisa pode começar e não acabar. – Também há coisas que nunca começaram? – Coisas que nunca começaram? – Mas estás bom da cabeça? Se nunca começaram não existem! Mas o fedelho, que era esperto que nem um alho, perguntou se não era possível contar ao contrário, do fim para o zero, isto porque aprendeu a contar de forma decrescente, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, zero!
Os adultos entreolhavam-se e não conseguiam dar uma resposta ao garoto, o que para ele era uma tristeza, porque pensava que os adultos sabiam tudo. Afinal não sabem.
E agora? Pensava, pensava mas não conseguia encontrar uma resposta. Talvez a dormir consiga, pensou. Assim, à noite, durante o sono, sonhava com muitos algarismos de cores e formas diferentes, pequeninos, grandes, sisudos, brincalhões, irrequietos; eram tantos que não os conseguia contar, estavam sempre a mudar de posição, nunca se mantinham no mesmo lugar e era impossível saber para onde iam. Tentava acalmá-los, pedindo-lhes para ficarem quietinhos e todos ordenados uns ao lado dos outros para que pudesse ver como seria o tal grande número, o maior de todos. Mas qual quê! O três, que era um invejoso, gostava de ser o oito, andava sempre à procura de um espelho ao qual se encostava transformando-se com a sua imagem num oito, algarismo antipático, que parecia ter o rei na barriga. O dois tinha a mania de ser um bailarino e gostava de deslizar como um cisne no lago. O um julgava-se o maior, pensava que era superior a todos os outros; sempre empertigado, de costas direitas, não olhava para nenhum outro; ferrava os olhos no chão, como quem diz, eu sou o primeiro. O quatro pensava que era o polícia; andava sempre de arma ao ombro e queria manter a ordem, mas os outros não o levavam a sério, um fanfarrão que não metia medo a ninguém. O cinco, um brincalhão, sempre com o boné com a pala para trás, gostava de ser ciclista e andava sempre em alta velocidade. O seis era um aldrabão, um fingido, porque umas vezes se punha a olhar para cima e outras fazia o pino, transformando-se no nove. O sete andava sempre aborrecido porque teimavam em o puxar com uma corda a meio. Fartava-se de dizer que não era preciso, mostrando, gentilmente, como era fácil distinguir-se do um, mas este não queria confusões, ele é que era o primeiro e não gostava de ser confundido com mais nenhum outro. O zero, um ai ó linda, andava sempre a rebolar por todos os lados deitando ao chão os outros algarismos que ficavam fulos com ele.
O menino tinha a sensação de que ali, no seu sonho, era possível construir o tal número, mas não conseguia lembrar-se quando acordava. Ficava um pouco confuso. Como os seus sonhos eram tão reais começou a pensar se aquilo que via no dia-a-dia não seria fruto da sua imaginação. Se assim fosse, então, no sonho, poderia encontrar e brincar com o que não tem fim e quem sabe se princípio...
E começou a contar antes de aprender a ler e a escrever. A princípio até dez, depois, com um pouco mais de dificuldade, chegou aos vinte e a partir daqui verificou que a cantilena era sempre a mesma, passando aos trinta, quarenta, cinquenta e assim sucessivamente até aos cem. Quando chegou aqui sentiu uma satisfação difícil de explicar, ao ponto de dizer, muito orgulhoso, sempre que lhe perguntavam: - Já sabes contar? – Sei sim senhor, até cem! A forma como pronunciava o “cem” era única, porque estava perante um número muito grande, um número mágico, uma prova de que era sabedor.
Muitas vezes contava alto, outras contava só para si, dentro da cabeça, mas cantava sempre; uma música muito harmoniosa e que “batia” sempre bem, terminando em um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove e depois rematava com os “entas” após ter ultrapassado o “dez” e o “vinte”. Os “entas” eram entoados como sendo fins de linhas, períodos que duravam um a dois segundos, o tempo suficiente para absorver uma boa fatia de ar para ir até à próxima sequência. Quando chegava aos cem fazia uma pausa maior, profunda, devido ao cansaço. Mas era uma satisfação. Cem!
Com o tempo verificou que as sequências dos “entas”, depois do dez e do vinte, tinham um equivalente nos cem, duzentos, trezentos e assim sucessivamente até chegar aos mil. Mil! Mil era coisa de adultos e o menino sentia-se muito feliz, mas custava chegar lá. Demorava muito tempo, mas conseguia. E depois do mil? Depois vinha dois mil, três mil, quatro mil e assim sucessivamente até que de repente começou a pensar que poderia contar sem parar. Chegado a este ponto perguntou aos mais velhos: - Até onde se pode contar? Qual é o maior número? Não lhe responderam, mas fizeram-lhe a seguinte pergunta: - O que é que tu achas? O menino pensou, pensou e depois disse: - Não tem fim! Como é possível não ter fim? Quando é que podemos acabar de contar? Riam-se e não davam respostas. Foi um novo conceito que lhe surgiu na sua cabecita e que o incomodou. Uma pergunta tão simples para a qual ninguém sabia a resposta. Uma coisa pode começar e não acabar. – Também há coisas que nunca começaram? – Coisas que nunca começaram? – Mas estás bom da cabeça? Se nunca começaram não existem! Mas o fedelho, que era esperto que nem um alho, perguntou se não era possível contar ao contrário, do fim para o zero, isto porque aprendeu a contar de forma decrescente, dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, zero!
Os adultos entreolhavam-se e não conseguiam dar uma resposta ao garoto, o que para ele era uma tristeza, porque pensava que os adultos sabiam tudo. Afinal não sabem.
E agora? Pensava, pensava mas não conseguia encontrar uma resposta. Talvez a dormir consiga, pensou. Assim, à noite, durante o sono, sonhava com muitos algarismos de cores e formas diferentes, pequeninos, grandes, sisudos, brincalhões, irrequietos; eram tantos que não os conseguia contar, estavam sempre a mudar de posição, nunca se mantinham no mesmo lugar e era impossível saber para onde iam. Tentava acalmá-los, pedindo-lhes para ficarem quietinhos e todos ordenados uns ao lado dos outros para que pudesse ver como seria o tal grande número, o maior de todos. Mas qual quê! O três, que era um invejoso, gostava de ser o oito, andava sempre à procura de um espelho ao qual se encostava transformando-se com a sua imagem num oito, algarismo antipático, que parecia ter o rei na barriga. O dois tinha a mania de ser um bailarino e gostava de deslizar como um cisne no lago. O um julgava-se o maior, pensava que era superior a todos os outros; sempre empertigado, de costas direitas, não olhava para nenhum outro; ferrava os olhos no chão, como quem diz, eu sou o primeiro. O quatro pensava que era o polícia; andava sempre de arma ao ombro e queria manter a ordem, mas os outros não o levavam a sério, um fanfarrão que não metia medo a ninguém. O cinco, um brincalhão, sempre com o boné com a pala para trás, gostava de ser ciclista e andava sempre em alta velocidade. O seis era um aldrabão, um fingido, porque umas vezes se punha a olhar para cima e outras fazia o pino, transformando-se no nove. O sete andava sempre aborrecido porque teimavam em o puxar com uma corda a meio. Fartava-se de dizer que não era preciso, mostrando, gentilmente, como era fácil distinguir-se do um, mas este não queria confusões, ele é que era o primeiro e não gostava de ser confundido com mais nenhum outro. O zero, um ai ó linda, andava sempre a rebolar por todos os lados deitando ao chão os outros algarismos que ficavam fulos com ele.
O menino tinha a sensação de que ali, no seu sonho, era possível construir o tal número, mas não conseguia lembrar-se quando acordava. Ficava um pouco confuso. Como os seus sonhos eram tão reais começou a pensar se aquilo que via no dia-a-dia não seria fruto da sua imaginação. Se assim fosse, então, no sonho, poderia encontrar e brincar com o que não tem fim e quem sabe se princípio...
Quase cedi à tentação de contar os caracteres que compõem este texto.
ResponderEliminarSeria um conto infinito porque, enquanto houver meninos, enquanto houver inocência nos meninos, os números não atingirão um fim, o que fará com que os meninos alimentem o sonho de conhecer, de conhecer o maior número do mundo...
Sei de uma ilustradora, que faria maravilhas, inspirada por este texto...
Com toda admiração inestimável: a Jeune transcreveu en Tocando Sem Tocar (e volta para comentar).Obrigada.
ResponderEliminarA propósito do Anaximandro e do que lhe disse a propósito da incerteza do gnómon todo o desejo de "contar" parece incidir com o relato de Diógenes - Anaximandro parece que fora o reguila que "primeiro" traçara o contorno de terra… Estranha sensação, a minha, de pensar que o espaço circular de Anaximandro é o seu transtornado «indefinido». Um «qualitativamente indefinido» que o une e afasta (simultaneamente) de Aristóteles (que mencionou Anaximandro algumas vezes nos seus escritos). (Curiosamente, ontem dei por mim a associar a tese de Malthus ao pensamento de Anaximandro)..).
ResponderEliminarObrigada..