segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Madrugada

Raia o dia e apaga-se a noite escura que vi nascer de forma prematura. O nascer e o pôr de uma longa noite testemunha da chegada do inverno. Vi-a nascer, ontem, debaixo de um sol frio que, lentamente, ia perdendo o triste brilho domingueiro. Vi que chegava por detrás das palavras, através de um quadro de vidro rasgado na parede de uma casa dedicada à palavra. O quadro atraía-me, uma obra de arte, uma pintura em movimento que mudava a todo o momento. Um quadro vivo em que as cores, a luminosidade, as sombras, a alegria e a tristeza nunca terão duas vezes a mesma oportunidade de se manifestarem, nem mesmo a pequena e sensual laranjeira que, a meio do quadro, expunha, orgulhosamente, apetecíveis frutos como se fossem seios de adolescente.
Olho através de um outro vidro, agora sou eu que me movimento, e ao ver o amanhecer recordo de imediato o sofrimento, mas não lamento, porque deve ser o único momento em que não o sinto. Mas é um amanhecer de pouca dura, porque em breve começarei a sentir a amargura.
O dia nasce com vontade de viver. É tão estranho ver o inverso do anoitecer, mais belo, muito mais belo, talvez por ser mais silencioso ou, então, por ser menos humano. As cores começam a espreguiçar-se, os cinzentos abanam, fazendo adivinhar o que está escondido debaixo do capote que os protege do frio. Nuvens, hoje só se veem nuvens azuladas, algumas meio sujas, preguiçosas e que teimam fazer a toilette. Até vertem águas depois da longa e repousante noite. Tudo em silêncio. Nem o ruído do comboio, suave, entremeado por alguma chiadeira dolorosa ao curvar, nem o roncar de um vizinho, nem o dormitar suspiroso da maioria dos passageiros perturbam o silêncio do amanhecer. Tenho a sensação de ser o único a ver os breves instantes em que é possível ver a nudez, a beleza e a frescura da natureza, sem pudor, instantâneos únicos que se vão sucedendo sem interrupção e todos diferentes. Belezas que não se deixam captar, apenas permitem sonhar. O único momento do dia em que não lamento a vida, momento breve, tão breve que chego a esquecer que existo.

2 comentários:

  1. Que forma tão sublime de ver esta madrugada de Outono!...

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  2. Momentos, imagens, sentimentos tão brilhantemente descritos que são quase tangíveis.
    É bom que o dia nasça com vontade de viver... e as pessoas com ele.

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