"Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los."
Marguerite Yourcenar in “O Tempo, esse grande escultor”
Cito de novo Marguerite Yourcenar a propósito do 30º aniversário da morte de Francisco Sá Carneiro e das inevitáveis tentações de recriar o homem, o seu pensamento e o destino que talvez tivesse tido, não fosse a Parca cortar-lhe o fio da vida na plenitude da sua ascensão no xadrez da política nacional. Quando recriamos um mito, projectamos nele os nossos sonhos para confirmar a admiração que lhe temos, queremos dar novo fôlego à grandeza que atraiu as emoções, queremos prolongar-lhe a vida, em suma, resgatando-lhe a ausência ao acreditarmos que teria sido o que se confiava que seria. Como diz a autora, só os que morrem jovens merecem essa arte da recriação, não para os prendermos ao que apenas tiveram tempo de ser, mas para os libertarmos para aquilo que poderiam ter sido. Honra, pois, a quem morreu nessa glória das lágrimas merecidas.
No entanto, também nesta arte de recriar os mitos está vincada a nossa marca nacional de afundamento e de negação. Se repararmos, invocamos os grandes não só para lhes confirmar a dimensão mas, sobretudo, para nos assegurarmos de que ninguém mais será como eles, para avisar que não vale a pena tentar, a ousadia paga-se cara porque se sairá sempre a perder. À invocação de um grande nome, segue-se inevitavelmente “já não há homens como esse!” ou então elogia-se um grande artista, uma fadista, por exemplo, para logo a seguir ressalvar que “não chega aos calcanhares da Amália”. Sobretudo que não se atreva. Nem essa nem nenhuma outra, nunca mais, presume-se e será confirmado, inexoravelmente. Não há forma mais segura - nem mais mesquinha - de destruir uma carreira promissora, ou de ensombrar as provas já dadas, do que “denunciar” a ambição ou o risco de vir a suplantar, ou sequer a equiparar-se a quem está no pedestal da nossa memória.
Pegando de novo em Marguerite Y., são os nossos mitos que nos possuem, cultiva-se o temor e não o exemplo, fazemos deles barreiras intransponíveis e não estímulos à coragem de ousar ou fonte de orgulho que nos devia ajudar a engrandecer.
É pena que esta mentalidade continue a ser aplaudida e alimentada, a coberto de pretenso espírito crítico. Até desse modo afirmamos que não merecemos nem os que se distinguiram nem os que, com todo o mérito, insistem em querer dar o seu melhor ao País.
Uma excelente análise sociológica com limites territoriais facilmente identificáveis. Somos mesmo assim, nada a fazer!
ResponderEliminarO meu sincero aplauso pelo texto, Suzana. Diz bem, recriar o mito. O que eu tenho lido e ouvido sobre Sá Carneiro poderia bem ser acompanhado com os gemidos de uma guitarra, num daqueles fados que idolatra para fazer crer que não vale a pena sofrer para ser como o idolo.
ResponderEliminarMas nalguns casos também revela bem a hipocrisia de alguns "possuidos" pelo mito. Valeria a pena recuar no tempo e recordar o que alguns diziam e escreviam sobre Sá Carneiro...
Suzana
ResponderEliminarA memória que guardamos sobre as pessoas e os acontecimentos que são para nós uma referência, seja do bem seja do mal, não deveriam ser motivo de uma desculpa esfarrapada para justificarmos um injustificável. Não é assim que guardamos memória daqueles que nos deixaram os seus ensinamentos. A memória é uma grande ajuda para iluminar o caminho. É assim que também devemos fazer em relação à vida pública e aos destinos políticos. Os mitos nada alimentam, só servem para nos diminuir e para atraiçoar a memória.
Gostei muito da sua reflexão, Suzana.
caro jotac, haver há, é uma questão de irmos combatendo esta mania!
ResponderEliminarTem razão Zé Mário, havia de cair o Carmo e a Trindade,ou se calhar achavam tudo normal, já não digo nada.
Os nossos mitos, sim, Margarida, mas há outros povos que sabem bem elevar os seus melhores sem os tornar inatingíveis, pelo contrário, são modelos a seguir e a ultrapassar, é isso que se educa.
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