Como médico tenho de fazer diagnósticos e, naturalmente, como qualquer ser humano, não consigo evitar de fazer auto diagnóstico. É fácil de intuir que é muito mais cómodo fazer os primeiros.
O exagero, a distorção e o anseio levam-me a errar, felizmente com alguma frequência, os diagnósticos das minhas doenças. Um alívio! Mas às vezes estão certos. Alguns não têm grande importância, mas mesmo assim incomodam, não digo fisicamente, mas intelectualmente. É o que está a acontecer neste momento. Quero lembrar-me do autor e do título de uma obra, em que o sonho de uma criança era um dia fazer uma tatuagem. O desejo da criança nasceu quando viu um marinheiro no porto com um veleiro tatuado no peito. Quando inspirava profundamente as velas enfunavam-se e o barco parecia voar. Eu gostaria de o encontrar e recordar algumas passagens que me marcaram sobremaneira, mas não sei onde está, deve estar encaixotado. Tudo por causa de algumas tatuagens que tenho visto ultimamente. Sofro de “Amnésia in litteris”, segundo Patrick Suskind no seu pequeno e interessante ensaio. Afinal, quando lemos um livro a nossa consciência e maneira de ser altera-se, de tal forma que somos também aquilo que lemos. Não interessa se conseguimos recordar, ou não, o autor ou o nome do livro. O mais importante são os seus efeitos, espécies de tatuagens que não se veem, mas que deixam as suas marcas na nossa mente, capazes de modificarem a nossa personalidade, enriquecendo-a.
Nos últimos tempos deparo-me com muitas pessoas tatuadas, coisa que há alguns anos era raro, não passavam de tatuagens feias, por vezes ridículas e toscas a dizer basta. Agora não. Algumas são encantadoras e denotam sentido estético a ponto de poder afirmar que são verdadeiras obras de arte.
Há tempos, uma jovem simpática, com piercings por tudo o que era sítio, apresentava várias tatuagens. Era verão, o braço direito, rechonchudo, a combinar com o resto do corpo, tinha uma figura com traços indianos, colorida, cheia de arabescos, muito complexa e inacabada. Tive de lhe perguntar o seu significado, e com alegria disse-me algo sobre uma deusa do amor e dos seus amores... Como se tinha divorciado há pouco tempo, lembrou-se de a fazer em homenagem ao seu grande amor! Fiquei de boca aberta e apontei para mais algumas no pé direito, letras estranhas e correntes. - Fi-las em memória de amigos que morreram! No pescoço, a descair para o dorso, mais tatuagens, um olho e letras arábicas. - Para protegerem do mau-olhado a mim e ao meu filho. No punho, mais algumas, também eram por causa de amigos, e dizia os nomes e circunstâncias em que morreram. Foi então que lhe perguntei se tinha muitos amigos. Respondeu-me que sim, que tinha. - E estão bem de saúde? Ripostei. Deu uma gargalhada, porque percebeu onde queria chegar, e com as suas mãos a rodear o seu corpo, vasto e largo, deu a entender que tinha superfície para todos.
Noutra ocasião, ao auscultar uma jovem senhora, e depois de ter aberto dois botões da sua blusa, deparei que na parte superior da mama esquerda estava uma mosca. Delicadamente, com o estetoscópio, fiz o gesto para a afastar. Claro que ficou no mesmo sítio. Apercebendo-se do meu embaraço começou a falar dela com uma ternura que me impressionou. - Uma mosca? E logo aqui? Disse-lhe. Retrucou-me que lhe dava muito gozo. - Mas o senhor doutor ainda não viu outra que está mais abaixo. E antes que dissesse algo, colocou a mama esquerda ao léu, levantando-a ligeiramente para que pudesse ver uma linda e multicolorida borboleta naquele espaço recatado, escondida na parte inferior e invisível ao seu olhar. Atendendo à idade não precisava de a levantar, porque tinha tónus e força capaz de fazer inveja a um míssil pronto a disparar. - Uma borboleta? E aqui? A explicação fascinou-me. - O senhor doutor já alguma vez tocou numa borboleta? Disse-lhe que sim. - E o que é que sentiu? Não me deixou responder, respondeu por mim. - Veludo. Não é verdade? Eu tenho aqui o meu veludo. Não disse nada, mas apeteceu-me perguntar-lhe o que é que iria fazer à sua borboleta aveludada quando as mamas perdessem a sua intumescência. Coitada, amachucada, às escuras e sem veludo.
Hoje, ao examinar um trabalhador, pedi-lhe para levantar a camisa e deparei que na zona pré cordial apresentava uma tatuagem com a figura de Che Guevara orlada a vermelho pela frase “Hasta la Victoria, Siempre”. Coloquei o estetoscópio em cima da figura do meu ex-colega, tapei-o, claro, e ouvi que o coração estava a funcionar muito bem. Não fiz um único comentário. Sabe-se lá o que teria de ouvir...
O exagero, a distorção e o anseio levam-me a errar, felizmente com alguma frequência, os diagnósticos das minhas doenças. Um alívio! Mas às vezes estão certos. Alguns não têm grande importância, mas mesmo assim incomodam, não digo fisicamente, mas intelectualmente. É o que está a acontecer neste momento. Quero lembrar-me do autor e do título de uma obra, em que o sonho de uma criança era um dia fazer uma tatuagem. O desejo da criança nasceu quando viu um marinheiro no porto com um veleiro tatuado no peito. Quando inspirava profundamente as velas enfunavam-se e o barco parecia voar. Eu gostaria de o encontrar e recordar algumas passagens que me marcaram sobremaneira, mas não sei onde está, deve estar encaixotado. Tudo por causa de algumas tatuagens que tenho visto ultimamente. Sofro de “Amnésia in litteris”, segundo Patrick Suskind no seu pequeno e interessante ensaio. Afinal, quando lemos um livro a nossa consciência e maneira de ser altera-se, de tal forma que somos também aquilo que lemos. Não interessa se conseguimos recordar, ou não, o autor ou o nome do livro. O mais importante são os seus efeitos, espécies de tatuagens que não se veem, mas que deixam as suas marcas na nossa mente, capazes de modificarem a nossa personalidade, enriquecendo-a.
Nos últimos tempos deparo-me com muitas pessoas tatuadas, coisa que há alguns anos era raro, não passavam de tatuagens feias, por vezes ridículas e toscas a dizer basta. Agora não. Algumas são encantadoras e denotam sentido estético a ponto de poder afirmar que são verdadeiras obras de arte.
Há tempos, uma jovem simpática, com piercings por tudo o que era sítio, apresentava várias tatuagens. Era verão, o braço direito, rechonchudo, a combinar com o resto do corpo, tinha uma figura com traços indianos, colorida, cheia de arabescos, muito complexa e inacabada. Tive de lhe perguntar o seu significado, e com alegria disse-me algo sobre uma deusa do amor e dos seus amores... Como se tinha divorciado há pouco tempo, lembrou-se de a fazer em homenagem ao seu grande amor! Fiquei de boca aberta e apontei para mais algumas no pé direito, letras estranhas e correntes. - Fi-las em memória de amigos que morreram! No pescoço, a descair para o dorso, mais tatuagens, um olho e letras arábicas. - Para protegerem do mau-olhado a mim e ao meu filho. No punho, mais algumas, também eram por causa de amigos, e dizia os nomes e circunstâncias em que morreram. Foi então que lhe perguntei se tinha muitos amigos. Respondeu-me que sim, que tinha. - E estão bem de saúde? Ripostei. Deu uma gargalhada, porque percebeu onde queria chegar, e com as suas mãos a rodear o seu corpo, vasto e largo, deu a entender que tinha superfície para todos.
Noutra ocasião, ao auscultar uma jovem senhora, e depois de ter aberto dois botões da sua blusa, deparei que na parte superior da mama esquerda estava uma mosca. Delicadamente, com o estetoscópio, fiz o gesto para a afastar. Claro que ficou no mesmo sítio. Apercebendo-se do meu embaraço começou a falar dela com uma ternura que me impressionou. - Uma mosca? E logo aqui? Disse-lhe. Retrucou-me que lhe dava muito gozo. - Mas o senhor doutor ainda não viu outra que está mais abaixo. E antes que dissesse algo, colocou a mama esquerda ao léu, levantando-a ligeiramente para que pudesse ver uma linda e multicolorida borboleta naquele espaço recatado, escondida na parte inferior e invisível ao seu olhar. Atendendo à idade não precisava de a levantar, porque tinha tónus e força capaz de fazer inveja a um míssil pronto a disparar. - Uma borboleta? E aqui? A explicação fascinou-me. - O senhor doutor já alguma vez tocou numa borboleta? Disse-lhe que sim. - E o que é que sentiu? Não me deixou responder, respondeu por mim. - Veludo. Não é verdade? Eu tenho aqui o meu veludo. Não disse nada, mas apeteceu-me perguntar-lhe o que é que iria fazer à sua borboleta aveludada quando as mamas perdessem a sua intumescência. Coitada, amachucada, às escuras e sem veludo.
Hoje, ao examinar um trabalhador, pedi-lhe para levantar a camisa e deparei que na zona pré cordial apresentava uma tatuagem com a figura de Che Guevara orlada a vermelho pela frase “Hasta la Victoria, Siempre”. Coloquei o estetoscópio em cima da figura do meu ex-colega, tapei-o, claro, e ouvi que o coração estava a funcionar muito bem. Não fiz um único comentário. Sabe-se lá o que teria de ouvir...
Caro Professor, peço-lhe que não me leve a mal o comentário que a seguir, deixo.
ResponderEliminarTambém sofro de um "mal" idêntico ao seu: gosto bastante de lêr e "arquivo" na minha memória, naturalmente, o assunto e o livro correspondente. Quando converso, ou leio acerca de alguma coisa (lá vem outra vez o "coisa" à baila), recordo-me e relaciono constantemente, passagens de livros que já li, com o assunto de conversa, ou de leitura.
Quando era mais novo, achava piada e até me dava alguma satisfação a memória "prodigiosa" que possuía, pois conseguia encontrar, não só o livro, como também a página ou páginas onde tinha lido aquelas frases que estava a relacionar.
Isto tornou-se um... vício... uma dependência, porque hoje, agravado pelo número de livros que já li, a minha memória já não me propicia essa facilidade de encontrar o que já li, num livro e deixa-me por vezes desesperar, obrigando-me a um esforço imenso de busca e de memória.
Mas, desta vez, quando cheguei à segunda personagem dos seus dois relatos, foi fácil lembrar-me imediatamente do poeta António Aleixo e da sua quadra;
Uma mosca sem valor
poisa c’o a mesma alegria
na careca de um doutor
como em qualquer porcaria.
Se o poeta popular ainda existisse e me desse a oportunidade de lhe ler este seu post, caro Professor, estou certo que a quadra que ficou para a posteridade, teria outra redação. Qualquer coisa talvez, parecida com isto:
Uma mosca inconveniente
poisa com mais alegria
na maminha da paciente
que em qualquer porcaria.
Ou então...
Uma mosca obsoleta
Auscultada por um doutor
Dá espaço à borboleta
Que tem muito mais valor
;)))
O bartolomeu sabe da poda...
ResponderEliminarMagnífico!...
ResponderEliminar(Até vejo aqui uma indirecta para a Jeune). Sim, os perigos são inúmeros, desde a Hepatite C vinda pela tinta (igual, muitas vezes, à que vem nas impressoras) que pode libertar toxinas que se infiltram nos pulmões, rins, etc., até ao HIV (devido ao material) e à própria ferida que é a tatuagem. Porém, uma pessoa que tatua uma vasta área está mais vulnerável. Faz sentido, o facto da Cruz Vermelha impedir as dádivas de sangue pelo menos durante um ano, creio… Mas, enfim, há tatuagens belíssimas! E o El Che tinha o seu estilo - é pena é ter sido, além de extremista, o braço do Fidelzito…
ResponderEliminarJeune Dame de Jazz
ResponderEliminarPois!! Vamos ver o que vai sair...
Repito o mesmo adjectivo do caro Drº Pinho Cardão: "Magnífico!"
ResponderEliminarNa generalidade gosto de todas as tatuagens que vejo por aí, algumas a revelarem muita arte e bom gosto. Mas às vezes na praia interrogo-me, tal como o caro Professor Massano Cardoso, sobre o aspecto que terão aquelas lindas tatuagens dentro de vinte ou 30 anos!?; e vem-me sempre à ideia o mesmo, a imagem de uma traça desbotada.
Por isso, se alguém um dia me perguntar se deve fazer uma tatuagem, vou-lhe dizer: faz, faz...de preferência na nádega, assim daqui a vinte anos são dois em um...
Deixe lá a memória, pelos vistos a sua retém o que é importante, a história do marinheiro, isso é que conta, pelo menos é o suficiente para nos levar a outras belas histórias, entre moscas e borboletas, as coisas raras que o meu amigo vê lá no seu consultório, na verdade vê o mundo todo, o que está à vista e o que se guarda bem escondido!
ResponderEliminarAs tatuagens “de amor” são feitas, muitas vezes, quando o coração/cabeça está cego/a por um amor ilusoriamente desmedido. E para apagar essas tatuagens quando o amor desaparece ou é traído? Aí a coisa torna-se mais complicada... Uma borboleta discretamente tatuada num tornozelo elegante... num ombro delicado será mais atraente e menos comprometedora. )
ResponderEliminarNo corpo encontram-se coisas que não lembra ao diabo, e outras que são parte integrante dele. O corpo humano é um "edifício" oco, e construído para ser habitado pela mosca, pela borboleta, pelo mosquito, pela pulga, pelo bacilo e pelo micróbio. Ao ler esta emocionante história, sobre as tatuagens, ocorre-me de momento que maior parte das mulheres não é tão jovem como se "pinta", contudo, a julgar pelo tónus, eu diria que o pior não é ver a mosca. É não poder espantar a mosca.
ResponderEliminarNão desanime, luis rosario!!!
ResponderEliminarResta-lhe sempre a opção do Viagra... dizem que é um optimo espanta-moscas e até teias-de-aranha...
;)))
Como diz o Professor Massano "O bartolomeu sabe da poda..."
ResponderEliminarOra... luis rosado, não é inteligente virarmos costas áquilo que nos pode ajudar a manter as moscas activas... aquilo são bichos que merecem a nossa total atenção.
ResponderEliminar;)))
rectificação: não sei onde fui buscar o "rosado", quero que fique bem claro, foi pura distração.
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