Não é preciso ser um especialista para saber que os países muçulmanos a braços com revoltas das populações eram dominados por regimes cleptocráticos e brutalmente repressivos; daí que, surpreendente seja a durabilidade destes regime, não a sua deposição. Mas, porquê, precisamente agora?
A resposta reside, em grande parte, no consenso monetarista que prevalece nas cúpulas dos bancos centrais e que ditou o pendor ultra-expansionista assumido pela política monetária global, com particular incidência nos EUA. Acontece, que em virtude da ligação dos regimes cambiais da generalidade das economias emergentes ao dólar americano, a liquidez injectada em doses massivas pela Reserva Federal (Fed) norte-americana se transmitiu automaticamente a economias como a China, a Índia ou o Brasil, tornando o famigerado quantitative easing da Fed a política monetária de quase todo o mundo. E, então?
A liquidez criada a rodos pelos bancos centrais ‘a partir do ar’ tem como consequência inescapável a depreciação da moeda: ou seja, a perda de valor do ‘dinheiro’. Para quem não se apercebe deste fenómeno – sofre de ilusão monetária -, a maior quantidade de moeda gera a sensação de aumento de riqueza, que tem como efeito estimular a actividade e, logo, promover o crescimento económico; mas só enquanto a ‘ilusão’ durar. Quem, pelo contrário, se apercebe deste fenómeno imediatamente, investe a liquidez excedentária injectada pelos bancos centrais em activos reais – aqueles que não perdem valor com a depreciação do ‘dinheiro’, como as commodities. Ora, a aparente retoma da economia global e a maior preferência por activos reais determinaram a explosão da procura por commodities, o que justifica a acentuada valorização do ouro e das restantes matérias-primas, incluindo as alimentares. E a relação disso com os árabes?
O alcance global da explosão da liquidez exacerbou a subida dos preços da alimentação, pondo em causa a sobrevivência de centenas de milhões de pessoas que viviam no limiar da pobreza - circunstância particularmente aviltante em países que, por via das seus vastos recursos primários, muito beneficiam do ‘ciclo altista’ das commodities, mas onde a fome se tornou endémica pela natureza usurpadora do regime político. É neste sentido que o encarecimento dos bens alimentares inerente à valorização das commodities em resultado da política monetária da Fed constitui o principal determinante no timing das revoltas árabes.
Até ao momento, existe um claro padrão de afinidade étnica, cultural e religiosa no processo de contágio da chama revolucionária. Mas existe o risco que as tensões sociais proliferem para além da orla meridional da bacia mediterrânica. Os focos de vulnerabilidade ocorrerão onde coexistirem fome e governos usurpadores. A continuar assim, cada vez haverá menos países onde assim não seja - os governantes (e respectivas cliques) que se cuidem!
Caro Drº José Mário Brandão:
ResponderEliminarExplicou de forma muito entendível, uma ou mais razões para a compreensão da revolta que parece estender-se a todos os paíeses onde existem governos de pendor totalitário.
No entanto, estas revoltas sociais só acontecem quando o povo atinge algum conhecimento de realidades diversas; e este conhecimento está certamente ligado, a meu ver, à facilidade com que hoje se acede à informação.
Caro Dr. Brandão de Brito, achei o termo "cleptocrático" delicioso, apesar de, em minha opinião, não se ajustar à circunstância de causa.
ResponderEliminarIsto porque, em minha opinião, não são só populações árabes, que se encontram sujeitas a estes regime, em Portugal também e, no entanto... não avança por cá nenhuma revolução popular (que conste).
;)
De resto, técnicamente, subscrevo totalmente o comentário que antecede, da autoria do nosso caro Jota Cê!
;)
E ainda há nas nossa elites andrajosas dos milhões a contraciclo quem não se tenha apercebido que a revolta dos povos começa quando a fome aperta.
ResponderEliminarEm Portugal o Estado insaciável que penhora a bom penhorar que se cuide!
É que a revolta está aqui tão perto!
Subscrevo o comentário antecedente.
ResponderEliminarEmbora cá não haja objectivamente um inimigo em quem possamos descarregar a nossa raiva, acho que se estão a criar condições para uma explosão social, com total representação dos jovens...
Percebe-se muito bem e parece-me incontroverso.
ResponderEliminarÉ curioso,no entanto, que num vídeo recentemente publicado no Economist
http://www.economist.com/blogs/multimedia/2011/02/unrest_arab_world
o factor inflação como rastilho destas revoluções não é citado.
Também me parece que um outro factor que pode ser determinante na erupção de revoltas e consequente desequilíbrio geoestratégico - as reservas de petróleo - não sejam citadas.
E, no entanto, pense-se no que poderia ocorrer se uma situação de caos, idêntica à que se observa na Líbia, alastrasse na Arábia Saudita.
Seria o caos mundial, não?
O aumento dos preços dos alimentos será, do meu ponto de vista, talvez a gota de água que entorna o copo. Não se sabe, no entanto, quem em última análise tirará proveito do tombo.
"A continuar assim, cada vez haverá menos países onde assim não seja - os governantes (e respectivas cliques) que se cuidem!"
ResponderEliminarEstá a pensar em Angola, por exemplo?
Caríssimos,
ResponderEliminarPertinentes comentários os vossos. sem dúvida que as novas formas de comunicação contribuiram para a disseminação do fenómeno revolucionário.
Relativamente a outros potenciais focos de tensão...penso que existe potencial onde se tem cavado o fosso da desigualdade, a qual se revela mais nitidamente quando a fome se acerca.
Parece-me muito bem observado, caro Dr. Brandão de Brito.
ResponderEliminarEssa relação de acusalidade sucessiva entre a política expansionista do FED, a alta das matérias primas alimentares e a deterioração das condições de vida de milhões de pessoas que vivem não muito acima do limiar da pobreza - terá sido certamente um dos "drivers mais poderosos da explosão social verificada em países do médio oriente e do norte de Africa...
Veremos o que ainda se vai seguir.
Caro Dr. Brandão de Brito,
ResponderEliminarSubscrevo integralmente a sua análise. O facto de os bancos centrais estarem, na sua generalidade, com a Fed à cabeça, a criarem incomensuráveis quantidades de dinheiro a partir "do nada", ao mesmo tempo tornam esta circunstância potencialmente explosiva para a economia mundial. No mínimo, estamos metidos numa situação de experimentalismo a uma escala planetária que nunca antes tinha ocorrido.
Pedindo emprestada uma expressão que Vasco Pulido Valente cunhou, na sequência da implosão do Império soviético, o mundo está perigoso!