A noite caíra gélida e o frio intenso apanhara de surpresa os que saíam do ambiente morno, depois de findo o espectáculo. Tinha sido um belo serão, o teatro estava cheio, a peça era divertida, o grupo de amigos dispersava-se enquanto soavam ainda algumas risadas a lembrar os melhores momentos dos actores. A rua estendia-se negra e estreita até à paragem de táxis e as duas amigas apressavam o passo enquanto aconchegavam os abafos, tentando conter o calor contra o vento agreste que soprava, revolto, por entre as esquinas das ruelas.
Da sombra, junto à parede dos prédios velhos, descola-se de súbito uma outra sombra, de forma humana. Um homem magríssimo e meio curvado, um mulato de cabelos emaranhados e uma barba rala, um oleado amarelo a fingir de casaco e as mãos esguias e secas, caminhou em passo incerto até elas, barrando-lhes o caminho numa atitude desesperada. – “Tenho tanto frio, senhora, estou a morrer de frio!” E balbuciava umas palavras misturadas, com sotaque da sua terra, “preciso de ir à farmácia, eles querem 6 euros para me tratar, é para tratar esta ferida”, e chegava a cara perto, a apontar uma crosta junto à orelha. “Preciso de abrigo, senhora, dê-me uma moeda, vou morrer de frio, custa 6 euros e eu não tenho”.
A aflição e o medo misturam-se numa luta surda, as senhoras hesitam em parar, o homem a apontar a ferida e a tremer, e elas aceleram o passo, mas procuram na bolsa a moeda libertadora, tome lá, dizem, já virando-se para trás, o homem não tinha forças para lhes acompanhar o passo, todo enroscado com frio. Aceitou a moeda mas lamuriou-se ainda mais alto, num grito de desespero, não chega, por favor, vou morrer de frio, são só 6 euros, por favor, eles querem seis euros.
O táxi à vista e o grito do homem magríssimo a ecoar entre o silvo do vento, duas moedas mais tiradas à pressa do fundo da carteira e o braço fino milagrosamente comprido a apanhá-las, mesmo a tempo, e correram para o transporte, a noite ia avançada, as ruas desertas.
Para trás, perdia-se o vulto do homem que trazia na pele a cor e a memória do sol quente da sua terra distante, enquanto esmorecia nas ruelas sombrias a ladainha do seu medo “vou morrer de frio, senhoras, vou morrer de frio!”
Li algures que, nestes dias de muito frio, a Câmara de Lisboa abriu um pavilhão desportivo e organizou voluntários para distribuir sopa quente e acolher os pobres e sem abrigo. Talvez o homem magríssimo com o oleado amarelo tenha conseguido chegar lá...
Da sombra, junto à parede dos prédios velhos, descola-se de súbito uma outra sombra, de forma humana. Um homem magríssimo e meio curvado, um mulato de cabelos emaranhados e uma barba rala, um oleado amarelo a fingir de casaco e as mãos esguias e secas, caminhou em passo incerto até elas, barrando-lhes o caminho numa atitude desesperada. – “Tenho tanto frio, senhora, estou a morrer de frio!” E balbuciava umas palavras misturadas, com sotaque da sua terra, “preciso de ir à farmácia, eles querem 6 euros para me tratar, é para tratar esta ferida”, e chegava a cara perto, a apontar uma crosta junto à orelha. “Preciso de abrigo, senhora, dê-me uma moeda, vou morrer de frio, custa 6 euros e eu não tenho”.
A aflição e o medo misturam-se numa luta surda, as senhoras hesitam em parar, o homem a apontar a ferida e a tremer, e elas aceleram o passo, mas procuram na bolsa a moeda libertadora, tome lá, dizem, já virando-se para trás, o homem não tinha forças para lhes acompanhar o passo, todo enroscado com frio. Aceitou a moeda mas lamuriou-se ainda mais alto, num grito de desespero, não chega, por favor, vou morrer de frio, são só 6 euros, por favor, eles querem seis euros.
O táxi à vista e o grito do homem magríssimo a ecoar entre o silvo do vento, duas moedas mais tiradas à pressa do fundo da carteira e o braço fino milagrosamente comprido a apanhá-las, mesmo a tempo, e correram para o transporte, a noite ia avançada, as ruas desertas.
Para trás, perdia-se o vulto do homem que trazia na pele a cor e a memória do sol quente da sua terra distante, enquanto esmorecia nas ruelas sombrias a ladainha do seu medo “vou morrer de frio, senhoras, vou morrer de frio!”
Li algures que, nestes dias de muito frio, a Câmara de Lisboa abriu um pavilhão desportivo e organizou voluntários para distribuir sopa quente e acolher os pobres e sem abrigo. Talvez o homem magríssimo com o oleado amarelo tenha conseguido chegar lá...
... ou não!
ResponderEliminarMas se não chegou, deixou como herança "um" grito que se sobrepôs ao silvo do vento gélido... que o matou.
Sim, sim... foi o vento, não um vento qualquer, mas um gélido vento, desumano, persistente, assassino.
Muitos são os ventos que cruzam a Terra, o "Levante" que sopra de E ou W e traz humidade; o "Sciroco" e o "Khamsin" que sopram de E e S e são quentes e sêcos, o "Marin" e o "Libécio" que sopram de SW e trazem humidade e chuva. Dificilmente, um destes ventos seria capaz de vitimar o "homem do grito". Não me refiro ao "O Grito" do desesperado norueguês Edvard Munch, mas sim ao do desesperado mulato, a quem a vida fêz conhecer outros ventos mais gélidos e vitimantes que "Mistral" e o "Bora" que sopram de N e NW ou o "Vardarac" e o "Grecale" que sopram de NE e são todos violentos, frios e secos.
Sim, o vento que o matou... se não conseguiu apanhar outro vento que o tenha levado até ao pavilhão que a Câmara disponibilizou na Ajuda, ao Alto de Santo Amaro, foi o vento do destino, aquele que escolhe quem na vida será rei... ou pedinte.
http://www.youtube.com/watch?v=bAsA00-5KoI&feature=related
Suzana
ResponderEliminarTive conhecimento que o Pavilhão da Ajuda estava preparado para acolher um número de pessoas muito superior ao que se veio a verificar. Apesar da vaga de frio, muitos Sem Abrigo não quiseram abrigar-se naquele tecto provisório que tinha para lhes oferecer cobertores, alimentação e cuidados de higiene.
Foi montado um dispositivo de transporte para recolher os Sem Abrigo e levá-los para a Ajuda. Muitos não quiseram ir e muitos outros ficaram esquecidos. O que terá acontecido a esse pobre homem?
Aqui há tempos contaram-me que os Sem Abrigo disputam o “abrigo” de rua onde vivem. Muitos deles não o abandonam com receio que outros tomem conta do espaço e sejam "despejados".
Esta mobilização da Câmara Municipal para uma ajuda suplementar aos Sem Abrigo, leva-nos a questionar porque não há uma ajuda permanente e estruturada para prevenir o seu aparecimento ou, pelo menos, para impedir que estas pessoas entrem no círculo vicioso de degradação de condições físicas e mentais que dificultam a sua recuperação.
Cara Dra. Suzana Toscano:
ResponderEliminarFez bem em abordar este tema, um flagelo visível em cada esquina das nossas cidades, que a crise de desemprego veio potenciar de forma assustadora, por desenraizamento de estrangeiros e também nacionais que abandonaram as aldeias à procura de melhor vida.
São infelizmente cenas e registos de um quotidiano que logo de seguida se esfumam, talvez por egoísmo, talvez por sabermos de antemão que a compaixão e generosidade individuais de pouco adiantam, ou talvez por um certo decadentismo de descrença na felicidade da pessoa humana, em que a vida agitada e de permanente competição é desculpa, e que em todo o caso serve de abrigo à nossa indiferença. É uma atitude feia? É.
A curto prazo impõe-se mais um esforço,” solidário” sob pena de, senão o fizermos, estarmos a ostracizar uma enorme multidão.
É de quanto a factura a pagar aos antigos escravos dos trópicos..usados ..abusados.. e ..abandonados ..
ResponderEliminarSe somos legítimos para receber heranças também somos para dívidas por pagar..
Quem paga a sua quota parte ?
Ainda há pouco tempo mário soares e os acólitos deixaram entregues a guerras infindas uma parte de Portugal. Antes ..no Brasil... acabamos com a escravatura por motivos meramente económicos e em vez de termos feito uma reforma agrária ,escolas e universidades para negros ...nãoooo ..jogámo-los por cima da cerca ..totalmente abandonados ..sem dinheiro..sem rumo..
Que escrotidão a nossa ...
Escravatura?
ResponderEliminarEste é um belo texto em linguagem literária, exprimindo uma preocupação social que todos devemos partilhar.
Sobre a escravatura, há verdades que nunca se dizem por inteiro. A escravatura é (sim, continua a ser) uma das pragas mais antigas duma humanidade em progresso desigual. Desde os gregos clássicos (eles próprios depois escravizados pelos romanos) que se debate da superioridade moral de ignorar os bárbaros ou de os civilizar utilizando o seu valor económico. Debate continuado pela hipocrisia das religiões proselitistas e das teorias filosóficas humanistas, com as consequências que se sabe. Os antropologistas dizem que nos lugares isolados e deixados totalmente em paz (?), os “bons selvagens” são frequentemente canibais, escravizam os grupos mais fracos, poucos chegam à idade adulta e culturalmente continuam na idade da pedra. É nas zonas de contacto e conflito que nasce o que chamamos de civilização, ou seja, uma mistura das emoções dos chimpanzés com a aspiração à perfeição dos seres que imaginamos com o nome de deuses.
JSR