No mesmo dia, de manhã...
Como é habitual levantei-me cedo, um pouco cansado e não menos desmotivado. Tudo feito na calma certo de que mesmo assim ainda chegaria antes da hora marcada. Foi o que aconteceu, um bom motivo para dar um curto passeio antes de iniciar o trabalho. Soube-me bem. Gosto de sentir a ameaça de calor logo pela manhã, é reconfortante, dá-me a sensação de que o ar e o dia ainda estão limpos, suficientemente limpos para poder confiar nos seres humanos e na natureza, confiança que, ao longo do dia, irá desaparecer como se o novo ser, acabado de nascer, estivesse ameaçado de morte sem ter a possibilidade de saber da existência da noite. Breves momentos em que consigo sentir algum prazer. Dei a volta, ouvi a água a cair, sons tranquilizadores, bebi a frescura e o odor das árvores, viçosas, entumescidas de vida e reparo numa nora que, com uma lentidão precisa, ia espalhando a água na caleira com um toque de desprendimento comovente. Baldinho, atrás de baldinho e a água ia passando do nível inferior para o superior à custa do esforço do próprio percurso,
Curiosa, deixa-se elevar, fugindo ao seu destino, ainda que momentaneamente, para rever o moinho a executar as suas funções.
Um moinho. Sempre gostei de moinhos. Havia um, junto da casa da minha avó, aproveitando as águas da ribeira. Vi-o vezes sem conta a transformar o milho em pó que esbranquiçava não só o espaço interior, mas também o moleiro e quem se atrevesse a lá entrar. Eu entrava e via tudo, a mó, a água, o ruído das pedras a roçarem-se, o falar alto para contrariar os sons de fundo, o moleiro, a mulher, a meterem-se comigo, e o burro, branco, já não sei se de natureza ou pintado pela farinha, à entrada, à espera, pacientemente, da carga, mas não podia ser muita, porque o animal já era conhecido pelos cuidados que tinha com a sua condição. Quando sentia que os sacos eram demasiado pesados, dava sinal de si, zurrava furiosamente, reclamando que dali não sairia se não o aliviassem do tormento. Era burro, mas não era estúpido. Quando o chateavam não estava com meias-medidas, utilizava as patas traseiras num sincronismo tal que tomara muitos pugilistas. Tinha fama, e proveito, de escoicinhar por tudo e por nada, motivo mais do que suficiente para não me aproximar demasiado e nunca pelas traseiras.
Ao olhar para o moinho, verifiquei que estava muito bem preservado e que era de dimensões muito grandes. Além da nora, havia também uma roda a girar rapidamente que devia ou deve acionar os mecanismos. Circundei-o e deparei-me com um mural de azulejos onde se podia ler: O Primeiro Moinho de Papel em Portugal em 1411. Fiz os cálculos e conclui que estava perante um equipamento com 700 anos. Há 700 anos surgiu neste espaço um moinho, não para moer grãos, mas para fabricar papel. Papel, esse elemento precioso que ajudou e ajuda a alimentar o espírito, basta que, para o efeito, o decorem de frases e imagens. Fiquei satisfeito. Moinho de papel, que designação tão bela. Moinhos de vento, moinhos de água, moinhos movidos pelos elementos, mas moinho de papel, movido a água, fez-me pensar que poderia haver também moinhos de ideias. Há tanto espaço a convidar-nos para que possamos transformar pensamentos em belas ideias.
Precisamos de moinhos de ideias, sete séculos depois de ter sido criado o primeiro moinho de papel em Portugal.
Também nunca tinha ouvido falar em moinhos de papel, mas moinhos de ideias há muitos. Um belo texto, uma palavra amiga, um momento de emoção, um dia bonito, uma grande alegria ou um sofrimento que nos faz pensar na vida. E a vontade de fazer o bem também dá muitas ideias.
ResponderEliminarLindo, caro Professor!
ResponderEliminarPela estrada plana, toque, toque, toque
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.
Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...
Toque, toque, toque, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!
Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!
Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...
Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!
Guerra Junqueiro