Entrou com um à-vontade pouco vulgar. Via-se que tinha traquejo em lidar com as pessoas, a profissão confirmou. A frescura ameaçava dar os primeiros passos em direção ao esquecimento, mas mesmo assim revelava algum encanto. Tudo certo. Nada de especial, a não ser a ansiedade, magistralmente representada na forma como começou a analisar os dados laboratoriais atuais com os últimos, depois de ter rapado de uma pasta cópias dos boletins. Em voz alta comentou: subi no ácido úrico, desci na ureia, aumentei nos monócitos, desci nos neutrófilos, uma ladainha que me obrigou a interromper os registos, comprovando a minha perceção. Surpreendido com esta atitude, expliquei-lhe que não podia lê-los dessa forma, porque estavam todos bens. As ligeiras oscilações observadas enquadravam-se dentro do intervalo de normalidade e, por isso, eram desprovidas de qualquer significado patológico. Antes, aquando do peso, recebi como resposta que tinha de perder mais alguns quilos. - Fui mãe há três meses. Sabe quantos quilos ganhei durante a gravidez, senhor doutor? Vinte e três quilos! O mesmo aquando da minha primeira filha. - Tem duas meninas? Sim, a mais velha com três anos e a outra com três meses. - Maternidade tardia, pensei. Este pessoal está a ter filhos cada vez mais tarde. A segunda nasceu depois de ter feito quarenta anos. A conversa continuou e, no final, foi a própria senhora a propor o que havia a dizer: - A única recomendação é deixar de fumar, não é senhor doutor? - Mas a senhora voltou a fumar depois da gravidez? Por que é que não aproveitou a ocasião para não regressar ao velho hábito? Olhou-me fixamente e disse: - Mas eu fumei durante a gravidez! - Não acredito! Como é possível? - Foram os seus colegas que me aconselharam. - Como?! - Sabe, eu sou muito dada a ansiedade e se não fumar fico muito mal. Por este motivo o meu psiquiatra e a minha obstetra combinaram em aceitar esta exceção. Mas não houve problemas, porque as crianças nasceram bem e não têm adoecido. Nem sabe como estou satisfeita. Ainda tive algum receio, mas, felizmente, não aconteceu nada às minhas adoradas filhas. - Está bem, não têm nada, aparentemente, mas podem vir a correr riscos no futuro, daqui a quarenta ou cinquenta anos. - Como?! Explique-me, disse a senhora. Foi então que lhe disse que as agressões ocorridas durante a gravidez e nos primeiros meses de vida podem provocar o “ligar” e o “desligar” de certos genes acabando por condicionar o futuro das pessoas em termos de saúde, e o tabaco é um poderosíssimo agente agressor. Disse-lhe, igualmente, que estas matérias vão ser desenvolvidas nos próximos tempos, originando novos “deveres” e “direitos” que até aqui eram ignorados. Sob o ponto de vista ético, não é correto contribuir para o aparecimento de doenças nos nossos filhos e até dos netos. A minha lição, sobre epigenética, ia-se desenrolando, e a senhora absorvia e compreendia, a tal ponto que acabou por me dizer que estava a começar a ter problemas de consciência pelo que poderia ter feito às filhas. Abrandei as minhas observações, tentando explicar que, quando não se sabe quais os efeitos que podemos provocar nos nossos descendentes, não há que ter problemas de consciência. No entanto, se soubermos os riscos que poderemos provocar, então, sim, é um problema, e muito grave. Nos próximos tempos estes assuntos irão estar na baila, sujeitos a análise e apreciação por parte de todos. Como temi que a ansiedade da senhora pudesse agravar-se a qualquer momento, arrepiei caminho, desvalorizando o que tinha a desvalorizar, sem nunca deixar de pensar que a senhora foi de um egoísmo terrível durante a gravidez, porque nem precisava deste tipo de informação para não fumar. A senhora, graças a qualquer tipo de capacidade, manipulou os médicos que a observaram durante o estado de graça, obtendo “permissão” para manter a sua péssima conduta.
Espero que, atendendo à idade, não se lembre de engravidar mais uma vez, porque se o fizer, e continuar a fumar, então, poderá ser classificada como uma pessoa não respeitadora dos direitos das crianças, alguém desprovido de sentido ético, mesmo que evoque as suas filhinhas como as “coisinhas” mais adoráveis deste mundo.
Espero que, atendendo à idade, não se lembre de engravidar mais uma vez, porque se o fizer, e continuar a fumar, então, poderá ser classificada como uma pessoa não respeitadora dos direitos das crianças, alguém desprovido de sentido ético, mesmo que evoque as suas filhinhas como as “coisinhas” mais adoráveis deste mundo.
Meu caro professor Massano,
ResponderEliminaros doentes psiquiátricos grávidos são realmente diabólicos. Esperemos que no futuro não se lembrem de lhes faltar ao respeito a eles. é que sendo iniputável está ao nível das crianças perante a lei ou perante a justiça.
Os adultos aqui são os médicos e esses é que devem ser responsabilizados pelos danos causados ás crianças...
É lógico e justo.
Texto muito interessante sobretudo pelo valor pedagógico que encerra.
ResponderEliminarA questão levantada pela cara Maria Calado, é assaz pertinente. De facto, partindo do princípio que a sra. é inimputável, põe-se o problema da responsabilidade, neste caso dos médicos que aconselharam. Será justo!? Como deviam os médicos proceder para precaver a saúde mental da mãe e, ao mesmo tempo, evitar prováveis danos no feto!?
Mas a senhora não é inimputável!!! Onde é que leram isso? A senhora é normal. Por ter andado num psiquiatra não a torna inimputável! A senhora sofre de ansiedade e trata-se como bem entende, neste caso com um médico psiquiatra ou outro qualquer.
ResponderEliminarTem toda a razão, caro Professor Massano Cardoso... Mas sabe como são os leigos, fala-se em psiquiatria e associa-se logo demência.
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