Há muitos anos, após uma conferência, houve alguém que me perguntou quais eram os primeiros sinais de envelhecimento. Devido à complexidade da pergunta e variabilidade na resposta, optei por focar dois interessantes fenómenos. Respondi, com alguma satisfação provocatória, porque o volumoso abdómen do interpelador assim o justificava, que um dos sinais de envelhecimento é quando uma pessoa começa a passar mais tempo do que é habitual à mesa e a falar dos prazeres propiciados pela comida. Como tinha de matar rapidamente a sessão, por falta de tempo, fiz uma segunda afirmação, um outro sinal passa pelo cemitério da nossa terrinha, assim, quando ficarmos surpreendidos com a quantidade de pessoas conhecidas deitadas de costas é porque estamos a caminho da velhice ou já somos velhos.
Esta ocorrência ressuscitou na minha mente, porque, ultimamente, ao final das tardes de sábado, tenho acompanhado a minha mulher ao cemitério para cumprir rituais com a memória familiar. Enquanto espero, entretenho-me a passear entre as campas, leio os nomes, faço cálculos mentais, para saber qual foi a idade da libertação, e, naturalmente, também gosto de apreciar o estado de conservação e os arranjos florais, das que os têm, já que há muitas despidas, vazias de flores e não sei se de lembranças ou de quem as possa lembrar. Fico, de cada vez que lá vou, surpreendido com o crescente número de pessoas que vou descobrindo e que conheci. Muitos dos finados conseguem, invariavelmente, despertar a minha atenção, porque as suas fotografias denotam um remoçar espantoso, algo que foram incapazes de almejar em vida, mas que a morte, de forma sarcástica, sabe realçar, mortos aos oitenta, mas com fotos dos quarenta.
O silêncio do terreno da paz, aliado à irrequieta intromissão da jovial passarada, criam um quadro de harmonia e de alegria, a ponto de provocar uma sensação estranhamente agradável, tenho que confessar.
As minhas memórias, e algumas que evolavam naquele espaço, comungavam dos mesmos desejos, paz e fuga dos velhacos que durante a vida se entretêm a lançar ferroadas, muito mais dolorosas do que as provocadas pelos belos e elegantes insetos que, debaixo da asa partida de um anjo, se entretinham a construir uma colmeia. Vespas?! Aproximei-me com cuidado e fiquei surpreendido com aquele à-vontade. Só num cemitério, e debaixo da proteção da asa de um anjo, é que poderia encontrar este achado. O mármore branco realçava o belo quadro naturalista, levando-me a querer conhecer o senhorio da propriedade. Dei a volta e, ah, recordo-me bem do dia da sua morte, há muitos anos, violenta, um acidente de automóvel. A cor branca, da velha ambulância “pão de forma”, contrastava violentamente com o líquido vermelho a ondular na maca de lona, imagem que me foi possível ver através da porta, entretanto aberta. A curiosidade permitiu-me ver uma cor viva, testemunho de que a morte andou por ali. Vermelho e branco, uma combinação feroz, como se o sacrifício do primeiro quisesse atalhar para a paz do segundo. Afinal o branco continua a resplandecer, agora no mármore, relembrando o branco da ambulância e da maca, quanto ao vermelho há muito que a terra o absorveu lançando-se suavemente sobre nós quando o sol quando mergulha no ocidente. A vida ressurge sob muitas formas, algumas misteriosamente, como a que pude ver debaixo da asa quebrada de um anjo, que, impossibilitado de voar, se lembrou de servir de base a uma colmeia de vespas, mas como é anjo não há ferroadas capazes de o ferir, e quem seria capaz de fazer mal a um anjo? Uma vespa? Não, só se for um homem, vivo, porque os mortos não incomodam ninguém e nem se incomodam com nada.
Envelhecer tem algumas vantagens, não muitas, apenas algumas, pelo menos permite que saboreemos lembranças escondidas em cascos de carvalho nas caves da memória, um sabor muito especial que uma colmeia de vespas sabe despertar...
Esta ocorrência ressuscitou na minha mente, porque, ultimamente, ao final das tardes de sábado, tenho acompanhado a minha mulher ao cemitério para cumprir rituais com a memória familiar. Enquanto espero, entretenho-me a passear entre as campas, leio os nomes, faço cálculos mentais, para saber qual foi a idade da libertação, e, naturalmente, também gosto de apreciar o estado de conservação e os arranjos florais, das que os têm, já que há muitas despidas, vazias de flores e não sei se de lembranças ou de quem as possa lembrar. Fico, de cada vez que lá vou, surpreendido com o crescente número de pessoas que vou descobrindo e que conheci. Muitos dos finados conseguem, invariavelmente, despertar a minha atenção, porque as suas fotografias denotam um remoçar espantoso, algo que foram incapazes de almejar em vida, mas que a morte, de forma sarcástica, sabe realçar, mortos aos oitenta, mas com fotos dos quarenta.
O silêncio do terreno da paz, aliado à irrequieta intromissão da jovial passarada, criam um quadro de harmonia e de alegria, a ponto de provocar uma sensação estranhamente agradável, tenho que confessar.
As minhas memórias, e algumas que evolavam naquele espaço, comungavam dos mesmos desejos, paz e fuga dos velhacos que durante a vida se entretêm a lançar ferroadas, muito mais dolorosas do que as provocadas pelos belos e elegantes insetos que, debaixo da asa partida de um anjo, se entretinham a construir uma colmeia. Vespas?! Aproximei-me com cuidado e fiquei surpreendido com aquele à-vontade. Só num cemitério, e debaixo da proteção da asa de um anjo, é que poderia encontrar este achado. O mármore branco realçava o belo quadro naturalista, levando-me a querer conhecer o senhorio da propriedade. Dei a volta e, ah, recordo-me bem do dia da sua morte, há muitos anos, violenta, um acidente de automóvel. A cor branca, da velha ambulância “pão de forma”, contrastava violentamente com o líquido vermelho a ondular na maca de lona, imagem que me foi possível ver através da porta, entretanto aberta. A curiosidade permitiu-me ver uma cor viva, testemunho de que a morte andou por ali. Vermelho e branco, uma combinação feroz, como se o sacrifício do primeiro quisesse atalhar para a paz do segundo. Afinal o branco continua a resplandecer, agora no mármore, relembrando o branco da ambulância e da maca, quanto ao vermelho há muito que a terra o absorveu lançando-se suavemente sobre nós quando o sol quando mergulha no ocidente. A vida ressurge sob muitas formas, algumas misteriosamente, como a que pude ver debaixo da asa quebrada de um anjo, que, impossibilitado de voar, se lembrou de servir de base a uma colmeia de vespas, mas como é anjo não há ferroadas capazes de o ferir, e quem seria capaz de fazer mal a um anjo? Uma vespa? Não, só se for um homem, vivo, porque os mortos não incomodam ninguém e nem se incomodam com nada.
Envelhecer tem algumas vantagens, não muitas, apenas algumas, pelo menos permite que saboreemos lembranças escondidas em cascos de carvalho nas caves da memória, um sabor muito especial que uma colmeia de vespas sabe despertar...
Outro bom sinal é quando se anda pelo cemitério e ainda "gosto de apreciar o estado de conservação"... eheh
ResponderEliminarJá me tinha chamado a atenção, o pormenor das fotografias, que o caro Professor realça.
ResponderEliminarEfectivamente, as fotos que "certificam" as últimas moradas da matéria, exibem na generalidade, no caso dos que faleceram velhos, idades entre os quarenta-e-tal e os cinquenta-e-tal. Isto leva-me a pensar que na maioria dos casos também, foi por essa altura, que se deixaram fotografar pela última vez. O que, a ser verdade, pode ser sinal de uma antecipação inconsciente, da imágem que desejavam ver imortalizada.
;)
Acho alguma piada aos cemitérios. Desde a morte do meu pai, visitei o cemitério de Arruda dos Vinhos, onde está sepultado, umas 4 vezes. E também me detenho a observar a arquitectura dos jazigos e as inscrições nas lápides. Eterna saudade, são as palavras que se encontram mais vezes escritas e reflectem a necessidade que cada um dos que ficaram sente, em demonstrar aos que passam, e lêem, o apreço em que tinham, o que partiu. Estranha relação vivos/passantes.
Oh Tonibler, há quanto tempo não passeia pelo cemitério? Podia fazer também um teste... Nunca se sabe qual o resultado ;)
ResponderEliminarO senhorio da propriedade, certamente estara na companhia do "Deus" que o levou! Mata-se um homem, é-se um assassino. Matam-se milhões de homens, é-se um conquistador. Mata-se a todos, é-se um Deus. Quiça, nao estara esse "Deus" a redimir-se, dando outras formas de vida a quem nao tem mais asas para voar?
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarCaro Massano Cardoso, também me habituei a ir ao cemitério desde que o meu pai morreu, há cinco anos e, tal como o meu amigo, fui-me familiarizando com os nomes, as idades, as fotografias das pedras mármores que estavam no caminho que percorro habitualmente. E a reparar nas flores e nos sinais mais ou menos teimosos que marcam as saudades. Há 15 dias tive um choque enorme porque no talhão "do meu pai" a maioria das campas estava revolvida e vazia, fiquei completamente atarantada e, devo confessá-lo,senti-me defraudada, de tal modo me habituei a ter aquele lugar como imutável. É altura de tratar de levantar os ossos, os "outros" já mudaram de sítio agora é a vez dele, não gostei de ver assim o seu lugar feito desconhecido. Afinal isso da "última morada" é falso, depois dessa há que decidir o destino dos ossos, depois das cinzas, enfim, a matéria custa a desaparecer, esperemos que seja verdade que os espíritos sobem ao céu e aí repousam para todo o sempre. Mesmo assim, ainda há que temer o Dia do Juízo Final, até a morte se torna uma complicação eterna...!
ResponderEliminarCaro Professor Massano Cardoso,
ResponderEliminarUm dos sinais de envelhecimento é quando as sobrancelhas começam a crescer, ouvi dizer a um srº octogenário!