Como já não podia terminar as minhas avaliações das candidaturas a bolsas, algumas teriam de ficar para o dia seguinte, como estava, aliás, previsto, aproveitei o resto da tarde para dar uma volta pela baixa lisboeta. Andar sem fazer nada num espaço amplo, belo, rico de histórias e cheio de pessoas a ondularem com mais ou menos sentido, não é habitual, confesso. Fiquei um pouco apreensivo. As pernas não queriam reconhecer o espaço e até queriam revoltar-se, como perguntassem, afinal onde é que queres ir. Fingia que não as ouvia, mas senti-as, e, em simultâneo, outros órgãos davam a conhecer um desconforto semelhante. Que raio de conspiração vem a ser esta? Pernas a tremelicarem, cérebro a tontear, entranhas a revoltarem-se. Credo. Fiquei tão inquieto que cheguei a questionar se não queriam irritar-me. Tentei ignorá-los, mas foi necessário fazer algum esforço. Apesar de conhecer bem o local, tive de me concentrar e ver se conseguia descobrir coisas novas que me distraíssem. Depois de calcorrear a rua Augusta, penetrei na praça do Comércio, onde o vento, misturado com a intensa luminosidade, desenhavam um quadro estranhamente delicado, intenso, forte, perturbado apenas pela fragrância a urina que evolava debaixo dos arcos, que nem a maresia bem tocada conseguia disfarçar. Um velho hábito que, pelos vistos, perdura.
Empurrado pelo vento subi a rua da Prata. Gosto de me cruzar com gente desconhecida. Se tivesse jeito para desenhar captaria sem hesitação o interior daquelas almas, porque quanto ao resto é fácil, basta ver e ouvir.
O vento desagradável parecia querer intensificar-se roubando calor ao sol e tornando a atmosfera incrivelmente límpida; foi então que comecei a compreender a razão de tão estranha e intensa luminosidade que caracteriza a cidade de Lisboa, atmosfera que não consigo encontrar noutro local.
A hora do jantar aproximava-se e eu queria um bom motivo para sentar e descansar à mesa de um restaurante. Ao atravessar a rua em frente à estação do Rossio, tive tempo mais do que suficiente para ver o belo enquadramento dos Restauradores, do castelo, do Rossio e do D. Maria. Um quadro cheio de cor, de luz e de sombra. Embrenhei-me à procura de um restaurante, para acalmar mais as pernas do que o estômago, e lá estavam os aliciadores dos repastos a convidar quem passasse à sua frente numa competição aguerrida. Não suporto tal prática, mas também não vou dissertar em demasia, limito-me a compará-los com algo semelhante a certos convites para saciar outros tipos de fome. Como é meu costume, pensei, só vou entrar num desde que não seja “convidado”. O pior é que já estava quase a chegar ao fim do espaço destinado à restauração e o comportamento mantinha-se na mesma. Talvez por ser o último, ou o primeiro, tudo depende do sentido, e, como não vi ninguém a chatear-me, entrei. O empregado, martirizado pela idade, e, quem sabe, por algum trato de polé, cumpriu o serviço com um ar sombrio que o transformava numa espécie de doutor dos tempos idos. Não lhe vi os dentes, mas, também, ver dentes não é tarefa fácil naquela zona, a não ser que sejam japoneses, os engajadores da restauração ou, então, os tolos de diversa natureza que, carcomidos pela vida e pelos miasmas, amarujam à cata de qualquer coisa, mas sempre bronzeados, mais pela falta de água do que pelo efeito do sol. E quanto a bronze também vi do melhor, uma jovem que se saracoteava à minha frente chamou-me a atenção. Ia num passo normal, ligeiramente sensual, dotada de pernas frescas, bem torneadas, baloiçando com elegância uma malinha branca em sincronia com o corpo. Ia a deliciar-me com a beleza do seu andar quando o vento, que como já disse andava à solta, se lembrou de dar um espirro silencioso a ponto de levantar o vestido da menina colocando à mostra um par de belos e carnudos globos apenas separados por uma ligeira tira de cor vermelha a condizer com a cor dos sapatos. Ooops! Disse a mocinha. Instintivamente, voltou-se, sem parar, sorriu, enrubesceu um pouco, mas não a ponto de ficar da cor dos sapatos, e, colocando a malinha em jeito de pisa papéis sobre o seu derrière, continuou a bambolear-se, desafiando o atrevido do vento que, surpreendentemente, deixei de ouvir suspirar...
De tantas pessoas e dos muitos quadros, naturais, impressionistas ou expressionistas, que encontrei, registo como recordação esta última imagem, a única que valeu a pena. Esqueci-me de dizer, os meus “conspiradores” acalmaram-se e eu também...
O vento desagradável parecia querer intensificar-se roubando calor ao sol e tornando a atmosfera incrivelmente límpida; foi então que comecei a compreender a razão de tão estranha e intensa luminosidade que caracteriza a cidade de Lisboa, atmosfera que não consigo encontrar noutro local.
A hora do jantar aproximava-se e eu queria um bom motivo para sentar e descansar à mesa de um restaurante. Ao atravessar a rua em frente à estação do Rossio, tive tempo mais do que suficiente para ver o belo enquadramento dos Restauradores, do castelo, do Rossio e do D. Maria. Um quadro cheio de cor, de luz e de sombra. Embrenhei-me à procura de um restaurante, para acalmar mais as pernas do que o estômago, e lá estavam os aliciadores dos repastos a convidar quem passasse à sua frente numa competição aguerrida. Não suporto tal prática, mas também não vou dissertar em demasia, limito-me a compará-los com algo semelhante a certos convites para saciar outros tipos de fome. Como é meu costume, pensei, só vou entrar num desde que não seja “convidado”. O pior é que já estava quase a chegar ao fim do espaço destinado à restauração e o comportamento mantinha-se na mesma. Talvez por ser o último, ou o primeiro, tudo depende do sentido, e, como não vi ninguém a chatear-me, entrei. O empregado, martirizado pela idade, e, quem sabe, por algum trato de polé, cumpriu o serviço com um ar sombrio que o transformava numa espécie de doutor dos tempos idos. Não lhe vi os dentes, mas, também, ver dentes não é tarefa fácil naquela zona, a não ser que sejam japoneses, os engajadores da restauração ou, então, os tolos de diversa natureza que, carcomidos pela vida e pelos miasmas, amarujam à cata de qualquer coisa, mas sempre bronzeados, mais pela falta de água do que pelo efeito do sol. E quanto a bronze também vi do melhor, uma jovem que se saracoteava à minha frente chamou-me a atenção. Ia num passo normal, ligeiramente sensual, dotada de pernas frescas, bem torneadas, baloiçando com elegância uma malinha branca em sincronia com o corpo. Ia a deliciar-me com a beleza do seu andar quando o vento, que como já disse andava à solta, se lembrou de dar um espirro silencioso a ponto de levantar o vestido da menina colocando à mostra um par de belos e carnudos globos apenas separados por uma ligeira tira de cor vermelha a condizer com a cor dos sapatos. Ooops! Disse a mocinha. Instintivamente, voltou-se, sem parar, sorriu, enrubesceu um pouco, mas não a ponto de ficar da cor dos sapatos, e, colocando a malinha em jeito de pisa papéis sobre o seu derrière, continuou a bambolear-se, desafiando o atrevido do vento que, surpreendentemente, deixei de ouvir suspirar...
De tantas pessoas e dos muitos quadros, naturais, impressionistas ou expressionistas, que encontrei, registo como recordação esta última imagem, a única que valeu a pena. Esqueci-me de dizer, os meus “conspiradores” acalmaram-se e eu também...
A luminosodade que nos surpreende e exalta os sentidos, quando nos passeamos pela Baixa Pombalina, é fruto de uma "conspiração maçónica"!
ResponderEliminar;)))
Sebastião José de Carvalho e Mello, guiou o espírito de Carlos Mardel e de Eugénio dos Santos, no sentido de reconstruir a cidade destruída pelo terramoto de 1755, segundo as linhas misteriosas do simbolismo maçon. Mas isso pr'o caso não interessa nada, o importante, caro Professor, é que a capital ou a decrepituda da mesma se tenha redimido do abalo físico que lhe provocaram, presenteando-o com a beleza e a sensualidade da bela morena... talvez descendente daquela outra que fez Vinícios de Morais criar aquela poesia imortal:
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
é ela menina, que vem e que passa
Num doce balanço a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Lisboa
O seu balançado é mais que um poema
é a coisa mais linda que já vi passar
Ai! Como estou tão sozinho
Ai! Como tudo é tão triste
Ai! A beleza que existe
A beleza que não é só minha
E também passa sozinha
Ai! Se ela soubesse que quando ela passa
O mundo interinho se enche de graça
E fica mais lindo por causa do amor
Só por causa do amor…
Por causa do amor... e do vermelho do sapatinho!!!
;))))
Caro Professor Massano Cardoso
ResponderEliminarÉ uma sensação diferente passear sem tempo, sem horas, sem obrigações, sem um objectivo propriamente dito que não seja caminhar e depois logo se vê, observar e olhar para o que está ou o que não está. De certeza que não há duas pessoas iguais que caminhando assim sejam tocadas pelas mesmas coisas ou sendo as mesmas coisas tenham idênticas sensações. É a diversidade e complexidade humanas a funcionarem...
Caro Professor Massano Cardoso,
ResponderEliminarExcelente narrativa, bela e simples,de uma tarde bem passada em Lisboa, que lhe estimulou os sentidos para criar este quadro impressionista, não fora Lisboa uma cidade cheia de luminosidade...