Domingo. Manhã rotineira em Santa Comba Dão. Tábua, almoço rotineiro. Pousada do Desagravo, café rotineiro. Dia fresco, com nuvens, a querer marrar com as pessoas. Para fugir à rotina agarro-me ao livro “De Moscovo a Petuchki” de Venedikt Erofeev. Já estou na parte final. Começa a ser diferente, à medida que o autor se aproxima de Petuchki, na sua viagem de comboio, o texto transforma-se, mais elaborado, ou, talvez, mais confuso, mas, mesmo assim, mais delicioso. Talvez seja o efeito prolongado de imersão alcoólica que o autor vai transpirando ao longo da obra, provocando uma espécie de embriaguez em quem o lê. O subtítulo, em português, é mais fiel do que o título em russo, “A lucidez de um alcoólico genial”. Álcool! Ao almoço, na casa de pasto, as jarras de vinho dos meus vizinhos desapareciam entre duas garfadas ou entre duas mandibuladas. O primitivismo alimentar do Homo sapiens era mais do que evidente. Em contraste com alguma dificuldade em lidar com os artefactos, via-se, perfeitamente, que eram exímios no uso das mãos, a par das mandíbulas, muitas delas desprovidas de dentes, e algumas mesmo sem nenhum. Um dos meus camaradas de repasto, não sei se incomodado com as suas próteses dentárias, não esteve com meias medidas, retirou-as, depositando-as dentro do boné em cima da mesa. Mastigava com os rebordos das maxilas, com rapidez, fazendo oscilar o nariz para cima e para baixo de tal maneira que ainda pensei vê-lo a morder o apêndice olfativo. Mas não, entretanto as jarras ficavam limpinhas. Dificilmente alguém seria capaz de saber se tinham albergado água ou vinho, mas, pela vermelhidão facial e alguns rinofimas a sofrerem agravamento, podia-se apostar no tinto. Uma das senhoras, relativamente nova - não é a primeira vez que a vejo -, com tiques de algum desarranjo mental, puxou de um saco de plástico, colocou-o em cima da mesa e encheu-o com os restos do prato, do pão, das travessas dos acompanhantes, de forma que não ficou uma migalha do quer que fosse. Tudo limpinho, porque os animais lá em casa já devem saber que hoje é domingo. A tolinha, de dimensões enormes, não se esqueceu da sua garrafa de litro e meio de gasosa. Não a bebeu toda desta vez, pelos meus cálculos ainda devia ter um quarto de litro, mas não foi esquecida, também foi com ela. Olhou para trás, para se certificar de que tinha limpo tudo e, com visível dificuldade na marcha, abalou. Os restantes ainda ficaram; refastelavam-se, beberricavam - depois de terem bebido muitos copos -, e iam comentando as notícias, as novidades do casamento principesco e as políticas. Estas chamaram-me a atenção. Uma visão muito prática das coisas que, sob o efeito da turvação alcoólica, ficavam admiravelmente aliciantes. Pensei, não há nada como falar de política sob o efeito do álcool, as decisões e os comentários tornam-se mais humanos, mais ricos e inovadores. Viva o álcool! Ato contínuo, pensei: os participantes do programa televisivo “Eixo do Mal” é que deviam ter bebido, pelo menos ontem. Na noite anterior, como espetáculo, foi particularmente divertido, quase que diria circense, devido às emoções a sobreporem-se à razão, fazendo com que cada um defendesse a sua ideologia até à exaustão, como se fossem donos exclusivos do que quer que seja, bastava ver como lançavam olhares incrédulos, de surpresa, sobretudo da parte de um, com aspeto de verdugo sem capuz, como se lhe tivessem roubado a sua “opinião”, somados ao cinismo militante da senhora que, sempre a sorrir, consegue estar contra tudo e contra todos, exceto, naturalmente contra aqueles que a alimentam ou que a vão alimentando. Pensei: mas esta malta deve ter o seu lado humano. Também devem ser boas pessoas. Estou convicto de que, apesar de navegarem cada um na sua esfera político-partidária e ideológica, deverão partilhar de algumas soluções das outras áreas como corretas, interessantes e pertinentes. Mas não conseguem comungar-se uns com os outros, porque adotam atitudes a lembrar os comportamentos clubísticos ou religiosos. Se alguém demonstrar que defende uma ideia que é “propriedade” de uma corrente ideológica corre o risco de ser considerado um apóstata e ser gozado pelos adversários. Ontem viu-se isso. Perante isto só há uma alternativa, um dia destes têm de fazer um programa semelhante, mas só depois de emborcarem umas boas bebidas. Quais? Qualquer uma deve servir, talvez vodka, há muita experiência com esta bebida! Carrascão nem pensar, dá uma ressaca do caraças! O ideal seria ter à mão o douto conselho de Erofeev, que sabia, como ninguém, e na sua qualidade de alcoólico genial, demonstrar a lucidez de certos temas. Estou convicto de que aquele pessoal deixaria transparecer facetas mais humanas, mais práticas e em consonância com a realidade e os interesses do país, verificando que, afinal, partilham de ideias comuns que poderiam ser muito úteis, para eles e para quem vê o seu programa. No fundo seriam mais honestos, muito mais honestos...
Caro Massano Cardoso,o melhor mesmo é não os ver, eu já decidi que trato a televisão como os convidados, só entra quem eu achar que é boa companhia e que vale a pena ouvir.
ResponderEliminarJá agora... e não querendo contradizê-la, cara Drª Suzana, qual é a fórmula de que se serve para a primeira aferição?
ResponderEliminar;)
Caro Professor:
ResponderEliminarBelo!
Quanto aos "actores" televisivos, estou como a Suzana. Só ouço quem quero...
Caro Bartolomeu, dou o benefício da dúvida uma ou duas vezes e depois os meus juízos negativos, quando se formam, são muito difícieis de mudar, ou seja, se não gosto não insisto. O resultado prático é que só ligo a televisão para ver alguma coisa que me interesse em concreto,ou porque tenho curiosidade de conhecer ou porque já vi que vale a pena. Acredite que há muitos dias em que nem chego a ligar a televisão.
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