quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Fernandito

Aproveitar as férias para visitar os mesmos locais constitui um ritual. Em princípio, não espero encontrar nada de novo, apenas reviver o passado, mas, por vezes, talvez antecipando a necessidade de, no futuro, desfrutar mais algumas lembranças, encontro coisas novas.
Vi na feira uma exposição sobre a imprensa regional do distrito, a primeira página do número um de jornais quase todos extintos. Ainda procurei alguns da minha terra, mas não os encontrei. Fiquei com pena e um pouco enraivecido. De qualquer modo, regozijei-me com algumas notícias produzidas nos finais da monarquia, no período da I República e no início do Estado Novo. Ainda nos queixamos da forma como se escreve hoje, mas se olharmos bem a raiva e o ódio estão bem patentes nalguns dos artigos da época, determinados pela luta entre monárquicos e católicos e republicanos. Chamou-me a atenção um artigo da "A Voz da Pátria", "quinzenário integralista", de Sernancelhe, em que o diretor, um padre, diz cobras e lagartos de Afonso "Pulha" da Costa e dos republicanos, mostrando as taxas de impostos a pagar, "Confisco de Bens!...". De acordo com o diretor, quem tiver um rendimento coletável anual de 20$000 pagará 3$690 (18%), de 100$000 pagará 28$970 (29%) e assim em crescendo até chegar aos 21.000$000 em que passará a pagar 22.979$000 (106%)! O padre Cândido Augusto Ramos Caldas afirma logo no início: "A república nada de proveito fez, roubando sempre, destruindo sempre, anichando sempre afilhados, fazendo novos-ricos, espalhando o dinheiro a rodos pela clientela faminta. Pasmai oh gentes!..."
No primeiro número da "Folha de Tondela", 18 de fevereiro de 1906, "semanário imparcial", chamou-me a atenção as notícias "Pelo Tribunal", publicitando os resultados das condenações e absolvições. Casimira de Jesus, de Vale dos Lobos, acusada de ofensas corporais foi condenada em 20 dias de multa a 100 réis nas custas e selos; Maria Emília de Santiago condenada por ofensa à moral pública na mesma multa; Casimiro Pimenta, de Caparrosa, condenado também por ofensa à moral pública, mas não pagou as custas por ser pobre. Dois outros foram acusados de pescarem com dinamite, um deles, o Joaquim Nunes Borges, de Ferreirós, foi condenado a 5$000 além das custas e selos, mas o Daniel da Silva Pereira, da Lageosa, foi absolvido. A par deste tipo de noticiário, são sempre nomeados os escrivães e os advogados. Deste modo, os putativos infratores poderiam saber quais os resultados caso se entregassem nas mãos de certos causídicos. Por exemplo, se tivessem a ideia de irem pescar com dinamite escolheriam o Dr. António da Costa Dias que patrocinou o Daniel da Lageosa, absolvido!
O número um do "Notícias de Tondela", "Trimensário defensor dos interesses do concelho de Tondela" (5 de junho de 1931), chama a atenção para a regularização do trânsito. Como o concelho está a passar por uma fase de desenvolvimento, o articulista noticia que desde há duas semanas existem placas indicativas de regularização do trânsito, "melhoramento de capital importância", atendendo ao trânsito crescente. E se não houvesse poderiam originar acidentes. "Os chauffeurs locais são respeitadores, mas os de fora não, que além do mais, passam pela nossa terra em corredias loucas, fazendo pouco caso dos 20 km à hora, velocidade esta que lhes só é permitido andarem dentro da área da vila. Não seria mau multar-se um, para exemplo de outros".
Outras notícias ou artigos poderiam ser aqui replicados, mas vou optar por um curto editorial publicado nos "Ecos do Caramulo", segunda série, presumo de 1931, "O Anjinho", referente à morte de uma criança. Um belo texto que merecia ser transcrito na totalidade, a marcar o sentimento que atinge as pessoas quando alguém, neste caso uma criança, desaparece."...O Fernandito, o meigo e gracioso Fernandito, que fez sonhar a seus pais as fagueiras e risonhas esperanças, desprendeu-se-lhes dos braços e como uma pombinha branca, de alvura imaculada, bateu as asitas e subiu apressadamente ao céu, onde era esperado pela divina orquestra dos anjos. Baldados foram os esforços empregados e impotente foi a ciência para salvar a vida ao pequenito, que era enlevo e o encanto de seus inconsoláveis pais, cujo golpe profundo ainda sangra constantemente e parece não cicatrizar-se tão depressa!”...
Velhas folhas, velhas notícias, coisas do dia-a-dia, vulgares ou não, fazem com que a vida seja temperada com outros sabores e condimentos, um passado que quer participar no presente, mesmo que ninguém se lembre do Fernandito...

3 comentários:

  1. Vá, seja sincero, Senhor Professor. Lá no fundo, o Senhor acredita que os milagres podem acontecer.
    Quando visita os locais da sua infância, alimenta a esperança de ver surgir, como que por magia, numa curva do caminho, o pequeno Massano Cardoso, atento aos ramos das árvores, na esperança de descobrir um ninho; ou às tocas dos lagartos, nos buracos dos muros.
    Diga-me cá caro Professor; se esse prodígio ocorresse, se uma extraordinária conjuntura astral ou esotérica o permitisse... que diria o Homem de Ciência, experiente, ao pequeno perscrutador?

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  2. Bartolomeu

    Quando acontecer não deixarei (ou deixaria) de dizer! Pode (poderia) ter a certeza.

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  3. Perguntei um dia a um amigo, que perguntas colocaria a um extra-terestre, caso ocorresse entre ambos um encontro.
    Respondeu-me que lhe perguntaria de onde vem... e devolveu-me a pergunta.
    Respondi-lhe: Perguntar-lhe-ia, porque vem...

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