Peregrinar com destino à capital transformou-se numa rotina quase religiosa. Converge tudo para Lisboa. A cidade gosta de se impor ao resto do país, não é por acaso que desdenha dos seus domínios chamando-lhe "província", criando um afastamento de forma a realçar a sua pretensa aristocracia, o que me diverte imenso.
Tive de participar numa reunião sem grande importância, que poderia realizar-se sem a minha presença, já que faz parte daquelas em que uma pessoa "tem" de entrar mudo e sair calado, mas as obrigações formais exigem que se cumpra o ritual. E eu cumpri. Restou-me algum tempo livre que aproveitei para ir até ao Chiado, onde tomei um café, onde me misturei com uma massa de gente anónima, mas conhecida de outros momentos, onde saboreei os fumos de castanhas a assar, fumos impedidos de dispersar pelo nevoeiro que se fazia sentir, onde vi alguns comportamentos sui generis, a conferir alguma luminosidade àquele espaço, onde me confrontei com algumas transformações arquitetónicas, felizmente para melhor, pelos menos desapareceram os incomodativos andaimes, onde me deparei com o fecho de uma livraria, a da Guimarães Editores, que feriu a minha sensibilidade e onde tive oportunidade de entrar nalguns alfarrabistas, como não poderia deixar de ser.
Senti que não estava com muita sede de livros. Não sei porquê. Às vezes acontece-me, entro sem sede e saio carregado que nem um doutor! Desta vez não.
De qualquer modo, consegui resolver um problema. Há muitos anos, agora sei que foi há quase vinte, participei, com outros colegas, na tradução de uma obra em português, uma obra técnica, um dicionário de Epidemiologia. Recebi alguns livros como compensação. Ao longo do tempo, alguns colegas pediam-me emprestado o livro, e, como seria expectável, acabei por ficar sem nenhum exemplar. Eu pensava que ainda deveria ter pelo menos um, guardado na faculdade, mas qual quê, também desapareceu! O livro, que nunca esteve à venda, foi distribuído pelos organismos oficiais a quem quisesse, mas esgotou-se. Ainda me recordo das voltas e do tempo que perdi para o encontrar. Em vão! Fiquei irritadíssimo. Paciência. Sempre que necessitava de alguma consulta tinha o original em inglês. Então não é que vejo um exemplar no meio daqueles longos escaparates, enfiado entre obras filosóficas, históricas e alguma poesia? Não percebi bem qual o enquadramento do mesmo, mas não faz mal. Na primeira página estava escrito o preço, cinco euros, quase que diria que é a "chapa cinco" para aquelas bandas. Retirei-o bruscamente com medo de que alguém se antecipasse, como se houvesse um outro epidemiologista à caça de "alfarrobas". Ri-me com esta expressão, porque no dia anterior, na televisão, durante o programa "O elo mais fraco", a certa altura, o esgazeado do apresentador pergunta a um concorrente, o que é que se pode encontrar num alfarrabista, e o jovem respondeu, automaticamente, alfarrobas! Pensei, ora aqui está uma bela e desejada "alfarroba", que custa cinco euros e que tanto trabalho me deu. Esta coisa de trabalhar e ter de pagar por cima para adquirir algo em que nos dedicámos com afinco, e gratuitamente, provocou-me uma sensação curiosa.
Valeu a pena ir à capital, passear por espaços familiares e resolver um problema que pensava ser insolúvel, sem nenhum esforço, a contrariar uma bela frase de Fernando Savater na sua obra "O grande labirinto", onde afirma: "Temos de estar preparados para o esforço, porque Deus vende as coisas mais valiosas pelo preço da fadiga que nos custa alcançá-las". Mas também é verdade que, por vezes, inesperadamente, conseguimos receber deliciosas prendas, e sabe muito bem, sobretudo nesta quadra.
Uma saborosa "alfarroba" que vou guardar como deve ser.
: )
ResponderEliminarNão posso deixar de sorrir. Só ao caro Prof poderia acontecer uma “ coincidência” destas, encontrar uma “alfarroba” preciosa, e, ainda por cima, a sua “alfarroba”. Se me permite – e sem receber resposta, tomo logo a liberdade – sugiro: não empreste a ninguém essa preciosidade.
Aproveito para lhe desejar Boas Festas.
Muito obrigado Catarina pelo seu comentário e os votos de Boas Festas que retribuo com muito prazer.
ResponderEliminarJã verifiquei que se procurarmos, não importa o quê, e se conseguirmos estar atentos, as coincidências aparecem e quando acontecem sentimos prazer, o que é muito bom.
Eu,um simples operário emigrante na Holanda desde 1964 e já velhote
ResponderEliminar(87anos),como sou algarvio achei imensa graça à alfarroba,um dos mais de duzentos nomes de origem árabe que figuram no Português.
E ao mesmo tempo achei triste o nível de cultura ou ignorância do
concorrente ao «Elo mais Fraco» que aliás até existe em muita gente que frequentou curso académico e que classificarei como «analfabruta».
De Boliqueime também sou eu/
mas não alinho com Cavaco/
sou filho da Plebe,sou plebeu/
sou um algarvio de pataco.