Não se sabe ao certo quando é que ele passou a ser o maluquinho do bairro. Talvez tudo tivesse começado precisamente quando foi para ali viver, por acaso ou por embirração, tudo na vida dele se tinha desenrolado por acaso ou por embirração. Nunca soube interpretar os acasos como uma sorte possível, e as teimas fixavam-no sempre na sorte que não chegava, era pouco, não era o que queria, mas que azar. Podia ter sido advogado, até andou na faculdade, um ano, só um ano, achava que tinha capacidade para mais do que aquilo, via bem que se lesse todos os livros que tinha do pai, e do avô, aprenderia muito mais do que qualquer doutor. Também embirrou com o emprego na repartição que a mãe lhe arranjou por acaso, arrastou-se anos a fio a caminho da secretária, rabiscava uns textos e embirrava, podia escrever mais e melhor, podia mesmo, mas ninguém se interessaria, vingava-se da indiferença escrevendo cada vez menos e pior, desdenhando dos outros que escreviam mais, pobres imbecis, ria-se calado e saia sozinho, nunca fez amigos e acabaram por o deixar sozinho na saleta mal iluminada, como se ele tivesse um mal contagioso. Quando se reformou ninguém se despediu dele e a menina da contabilidade fez-lhe as contas sem sequer lhe desejar felicidades.
Algures no meio da vida casou-se, namorava a rapariga por embirração com a mãe, que lhe dizia que ele nunca arranjaria alguém que o quisesse, o acaso espreitou e pregou-lhe a partida de o fazer pai, lá assinou o papel contrariado, pior ainda porque teve que mudar de casa e ir para aquele bairro miserável, só gente pobre, ruas estreitas, muito abaixo da sua condição, dizia ele, que azar, que azar. Mas a casa era dele por embirração, armara uma guerra com um primo que lá vivia, exigindo a posse da casa, agora tinha a casa e odiava-a. Quando se instalou com a família no rés do chão amarelo decidiu que seria provisório, nem valia a pena pintar nada, nem arranjar a cozinha velha, amontoou os caixotes de livros, instalou a poltrona que herdara do pai e já fora do avô, a mulher que se arranjasse com o resto, e assim ficou. Também não se sabe ao certo quando começou a beber, todos os dias se perdia nas ruelas ao cair da noite, o silêncio carregado da mulher quando ele chegava a casa ainda o fazia beber mais, serão fora. Bebia para matar as mágoas mas o álcool matava-o a ele e as mágoas cresciam, o filho não lhe dirigia palavra, a mulher ignorava-o com um altivez doentia, até ganhara aquele jeito de lhe pôr o prato à frente e deixá-lo comer como se fosse um cão, ela e o rapaz comiam na cozinha enquanto ele beberricava e via televisão na saleta sombria que em tempos fora amarela.
Um dia perdeu-se nas ruas do bairro, queria voltar a casa e não sabia o caminho, olhava atarantado à sua volta e tudo era novo, perguntaram o nome e não sabia, alguém o reconheceu e levou a casa por misericórdia, uma cirrose, é o que é, se o senhor continua a beber tem os dias contados e olhe que não vai ser bonito de ver.
Deixou de beber, por temer mais a morte do que as mágoas que queria afogar. Passeia-se pelo bairro duas vezes por dia, compra o jornal e embirra com tudo o que encontra pelo caminho. Leva na cabeça um chapéu de abas moles para se proteger do sol ou do frio, ou da chuva, ou para enxotar os cães que lhe ladram quando passa, ou para esconder os olhos dos vizinhos que há muito deixaram de o cumprimentar. Segue lentamente pelas ruas fora, macilento e mal barbeado, a falar sozinho, a gesticular, às vezes tropeça numa pedra ou pára numa montra a maldizer tudo o que podia ter comprado mas que nunca na verdade lhe interessou. O filho há muito saiu de casa para casar com uma rapariga que não apresentou ao pai, a mulher vive agora noutro bairro mas, pensa ele, humilha-o todos os dias, teimando em ir lá quando ele não está para lhe deixar em cima do fogão o pratinho com a comida, para ele aquecer quando chegar a casa.
O maluquinho do bairro come em silêncio, na casa vazia, maldizendo a dieta insípida a que está condenado. Senta-se no sofá que era do pai e foi do avô, compõe a manta sobre as pernas e liga a televisão para abafar os sons que lhe chegam da vizinhança e que, acredita, têm o único propósito de lhe incomodar o sossego.
Algures no meio da vida casou-se, namorava a rapariga por embirração com a mãe, que lhe dizia que ele nunca arranjaria alguém que o quisesse, o acaso espreitou e pregou-lhe a partida de o fazer pai, lá assinou o papel contrariado, pior ainda porque teve que mudar de casa e ir para aquele bairro miserável, só gente pobre, ruas estreitas, muito abaixo da sua condição, dizia ele, que azar, que azar. Mas a casa era dele por embirração, armara uma guerra com um primo que lá vivia, exigindo a posse da casa, agora tinha a casa e odiava-a. Quando se instalou com a família no rés do chão amarelo decidiu que seria provisório, nem valia a pena pintar nada, nem arranjar a cozinha velha, amontoou os caixotes de livros, instalou a poltrona que herdara do pai e já fora do avô, a mulher que se arranjasse com o resto, e assim ficou. Também não se sabe ao certo quando começou a beber, todos os dias se perdia nas ruelas ao cair da noite, o silêncio carregado da mulher quando ele chegava a casa ainda o fazia beber mais, serão fora. Bebia para matar as mágoas mas o álcool matava-o a ele e as mágoas cresciam, o filho não lhe dirigia palavra, a mulher ignorava-o com um altivez doentia, até ganhara aquele jeito de lhe pôr o prato à frente e deixá-lo comer como se fosse um cão, ela e o rapaz comiam na cozinha enquanto ele beberricava e via televisão na saleta sombria que em tempos fora amarela.
Um dia perdeu-se nas ruas do bairro, queria voltar a casa e não sabia o caminho, olhava atarantado à sua volta e tudo era novo, perguntaram o nome e não sabia, alguém o reconheceu e levou a casa por misericórdia, uma cirrose, é o que é, se o senhor continua a beber tem os dias contados e olhe que não vai ser bonito de ver.
Deixou de beber, por temer mais a morte do que as mágoas que queria afogar. Passeia-se pelo bairro duas vezes por dia, compra o jornal e embirra com tudo o que encontra pelo caminho. Leva na cabeça um chapéu de abas moles para se proteger do sol ou do frio, ou da chuva, ou para enxotar os cães que lhe ladram quando passa, ou para esconder os olhos dos vizinhos que há muito deixaram de o cumprimentar. Segue lentamente pelas ruas fora, macilento e mal barbeado, a falar sozinho, a gesticular, às vezes tropeça numa pedra ou pára numa montra a maldizer tudo o que podia ter comprado mas que nunca na verdade lhe interessou. O filho há muito saiu de casa para casar com uma rapariga que não apresentou ao pai, a mulher vive agora noutro bairro mas, pensa ele, humilha-o todos os dias, teimando em ir lá quando ele não está para lhe deixar em cima do fogão o pratinho com a comida, para ele aquecer quando chegar a casa.
O maluquinho do bairro come em silêncio, na casa vazia, maldizendo a dieta insípida a que está condenado. Senta-se no sofá que era do pai e foi do avô, compõe a manta sobre as pernas e liga a televisão para abafar os sons que lhe chegam da vizinhança e que, acredita, têm o único propósito de lhe incomodar o sossego.
Delicioso. Estou a vê-lo e a segui-lo no seu estranho deambular, imaginando o que deve sentir. É o maluquinho do bairro, mas, também, poderia ser o maluquinho da aldeia. Se olharmos bem os maluquinhos acabam por ensinar-nos muito mais do que pensamos...
ResponderEliminarVa-lá, va-lá... que apesar de tudo, ainda tem uma mulher que lhe leva um pratinho de comida, todos os dias.
ResponderEliminarAté quando, poderá essa não-neoliberalista, alimentar essa loucura?!
Suzana
ResponderEliminarMas que bela descrição. Estou a vê-lo...
Realmente há pessoas que vivem de costas viradas para a vida, centradas em si próprias sem olhar com olhos de ver e de sentir os outros à sua beira. Depois acabam sozinhos, a embirrarem consigo próprios e com sorte ainda têm quem lhes leve o pão à boca!
Péssimo, nem sequer chega a sr o maluquinho do bairro, é só um ser amorfo e extremamente vulgar.
ResponderEliminarE tantos que deambulam perdidos na cidade(!). Imagino-os sem memória, pois só assim lhes será possível suportar a vida sofrida e a nossa indiferença...
ResponderEliminarSem dúvida caro Massano Cardoso, quanto mais não seja fazem-nos pensar nos motivos pelos quais as pessoas podem chegar a certos extremos de infelicidade e abandono.
ResponderEliminarcaro Bartolomeu, é caso para dizer que todos os diabos têm sorte, vá lá saber-se, mas em geral as mulheres têm as suas razões para decidir proceder contra o que parecia ser razoável :)
Margarida, há realmente pessoas que tenam demasiadamente a sorte, rejeitando tudo o que lhes aparece e estragando a sua vida e a dos outros.
cara Lili, não sei se é vulgar, mas se é felizmente não conheço assim tantos casos parecidos, enfim, aqui fica então mais um.
Caro jotac também acredito que sim, há sempre, felizmente, um cero apagamento da consciência, talvez seja por isso que as pessoas se isolam, para apagar as memórias, a natureza tem processos de atenuar esses sofrimentos, pelo menos é bom acreditar nisso.