Antes de saber o que era o efeito doppler já o entendia perfeitamente, bastava ouvir o roncar de um carro de desporto, único na região, a galgar as curvas atapetadas pelos velhos paralelos. O som do motor agudizava-se, ferindo pela enésima vez os tímpanos quando passava em frente. A seguir, esperava, ou melhor, esperávamos, em silêncio religioso, que tinha chegado a ocasião do Senhor da Ponte ser defenestrado. A saída da ponte fazia-se num perfeito ângulo reto e o condutor, louco, não curvava, utilizava o travão de mão para fazer um "meio peão", continuando a galgar a subida numa velocidade frenética. Não sei o que é que o Senhor da Ponte, que devia prezar o silêncio da sua bela capela, pensaria a seu propósito, às tantas deveria pensar o mesmo que nós, mas na sua qualidade de guardião da ponte e senhor do universo dava-lhe algum desconto e endireitava a viatura à saída da ponte deixando-o ir em paz, mas sempre convicto de que mais tarde ou mais cedo algo lhe aconteceria, porque não pode ir a todas. Ao fim de quase dois milénios o tempo também faz os seus estragos e a paciência já não é a mesma. As coisas mudaram muito, no seu tempo não havia máquinas daquelas, apenas burros, cavalos, camelos e carroças, que também causavam alguns problemas, mas, dadas as circunstâncias, até achava alguma piada àquele radicalismo prenunciador de uma nova época, em que a velocidade seria rainha da sociedade. Tudo isto se passou em meados dos anos sessenta.
O seu gosto por máquinas novas, e cada vez mais potentes, ofuscava-lhe o discernimento quanto ao futuro, como se toda aquela imensa fortuna o vacinasse eternamente ante qualquer infortúnio ou malhadice do destino. O fosso entre ele e os outros era tão evidente, que nós, os que vivíamos neste planeta, e também num mais do que previsível e estranho país, não conseguíamos entender o que era ter tanto dinheiro e tantas mordomias. Foi através dele que soubemos que existia tabaco Marlboro. Ficávamos fascinados quando rapava de um maço, abria a caixa, retirava a cinta interna de prata e após acender o cigarro ficávamos inebriados com aquele cheiro suave e perfumado que contrastava com os nossos cigarros sem filtro, de sabor e cheiro grosseiros, cheios de arestas que o fumo, entretanto, limava ao passar através das nossas pobres gargantas.
Não sei se chegou a tirar o quinto ano, mas acho que não. Não tinha tempo, nem paciência para essas miudezas, e nem precisava.
O tempo não pára, exceto para os que morrem, por isso mesmo é que são os únicos que sabem como ninguém o que é a eternidade.
Muitos anos depois, o Senhor da Ponte, também um pouco mais velho, esqueceu-se de o proteger. Teve um acidente, não muito longe da ponte, mas pelos vistos longe do Senhor. Uns tempos antes começou a sinalizar algumas dificuldades, ele que nunca trabalhou, resolveu trabalhar, mas afinal, mais valia não o ter feito, porque o negócio não lhe terá corrido bem.
O afastamento foi-se construindo, exceto nalgumas circunstâncias em que a minha mais ou menos novel qualidade profissional assim o exigia. Não era o mesmo, as capacidades mentais tinham sofrido muitas alterações depois do acidente esperado há mais de vinte anos, quando me inteirei do efeito que mais tarde viria a conhecer por doppler. Acabou por acontecer o desastre de viação, agora faltava o desastre económico. Lenta, mas com firmeza, a decadência foi-se instalando, e a enorme fortuna dissipou-se. Cheguei a vê-lo algumas vezes, envelhecido, apagado, revelando uma promissora e mais do que certa tragédia. Saiu da localidade. Aparecia de vez em quando, como que às escondidas, fugindo aos olhares dos que o viram naquela época aúrea do GT e dos maços de Marlboro.
Hoje, soube que tinha falecido esta semana. Tudo por causa de um outro falecimento que ocorreu na semana passada e que, também, tive conhecimento por acaso. Não era muito mais velho do que eu, teria mais três ou quatro anos. Pedi alguns pormenores. Fiquei estarrecido. Numa miséria total. Vivia do rendimento de inserção mínimo e estava num lar.
Um desastre.
A ponte há muito que está submersa. A capela foi retirada do seu sítio. Colocaram-na num local onde o Senhor da Ponte pode ver ou ouvir os carros a passarem, mas não é o mesmo. Não sei se ainda se lembra daquele "meio peão", louco, muito louco, que ele fazia mesmo à sua frente e que deveria diverti-Lo. Evitou tantas vezes o acidente, exceto daquela vez em que não se apercebeu. Em memória dos velhos tempos, apetece-me dizer-Lhe o seguinte: - Já que evitaste tantas vezes o desastre, também poderias ter evitado este, o desastre da decadência humana...
Belo naco de prosa, caro Professor. Ivo Andric, Prémio Nobel da Literatura, fez passar no seu livro, A Ponte sobre o Drina, séculos de história da Sérvia e da Bósnia,lutas entre nações, resistências ao domínio turco, o viver das diversas comunidades locais, turca, católica, muçulmana e judaica, episódios da vida e histórias de pessoas. Se, como romance, o livro não é interessante, é indispensável para conhecer a história da região.
ResponderEliminarOra esta sua descrição lembrou-me muitas vezes esses livro.
Por isso, caro Professor, daqui lhe sugiro que escreva um livro que retrate um período da vida portuguesa a partir dessa ponte e da Senhora da Ribeira.
Caro Professor MC,
ResponderEliminarParabéns por este seu texto. Está fabuloso.
E deixou-me a pensar (a imaginar, a inventar) na aplicação do efeito doppler aos acontecimentos que se vem a revelar como desgraças nas vidas das pessoas. Parece que chegam num ápice, e só damos por eles quando já estão bem perto de nós, o seu ruído ensurdecedor e cada vez mais alto e agudo. Acontece o momento de passagem, o ponto zero, em que os efeitos são os de maior amplitude, embora às vezes nem pareça, por ser tão fugaz e breve esse instante no tempo. A partir daí, é um lento e inexorável arrastar, cada vez menos notório e visível, mais espaçado e distante no tempo, menos ruidoso e exuberante na aparência, mas não menos real.
Mais uma vez, parabéns pelo texto.
As voltas que a vida dá aqui tão bem relatadas. Mas teria ele querido fazer diferente, se soubesse o que o destino lhe reservava? Talvez não, talvez tenha vivido muito tempo das glórias da sua época jovem, talvez o que viveu tenha alimentado a coragem para suportar as privações. Há pessoas assim, que sorvem de um trago o que há no cálice e depois, numa curva da estrada, ficam sem nada. Também eles alimentam o nosso imaginário, e nos dão a conhecer os "Marlboro" que nunca sonhavamos que existissem. Caro Professor Massano, um abraço amigo!
ResponderEliminarCaro Professor,
ResponderEliminarUm relato simples, mas prenhe de significado, em torno de uma vida humana cujo percurso o meu Amigo surpreendeu nas suas etapas fundamentais...
Ao lê-lo, fui evocando algumas figuras que conheci na minha juventude, com percursos de vida tão parecidos com o deste "acelera" que, tendo nascido num berço de ouro, não foi capaz de perceber que o mundo estava a mudar, acabando entregue à mais negra miséria!
Que vida esta, tão cruel por vezes!