terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Uma fotografia...

Na velha casa da terra natal, subo as estreitas escadas até ao andar de cima. Vou lá poucas vezes. As últimas arrumações convidaram-me a ir dar uma olhadela. São um pouco íngremes, é preciso apoiar no velho corrimão. À entrada de uma pequenina sala, que, por sua vez, serve de antecâmara a um dos sótãos, vejo, pendurado na parede, uma velha fotografia. Uma delicada sépia embelezada pelo tempo. Vestidos a rigor, um casal, com fatos domingueiros, olhares profundos, fixando com determinação a objetiva da câmara, numa pose ensaiada pelo artista, ombreavam uma criança vestida à época, alvorada do século vinte. Quem são? Nunca tinha reparado nesta fotografia. Sei lá! Não sabes? Devem ser parentes da minha avó, talvez primos que emigraram no princípio do século passado para os Estados Unidos. Sabes como é que se chamam? Já te disse que não sei quem são. Eram coisas da minha avó! Mas nunca lhe perguntaste quem eram? Deixa-te disso. O melhor é tirá-la daí. Não senhor. Tem que ficar. Tem arte, possui algo que não entendo, os olhares são muito penetrantes, quase que permitem ver o que lhes vai na alma. Entretanto, retiro a foto da moldura e vejo que foi mesmo tirada em Boston. Uma foto assinada. Até a criança já deve ter morrido, disse eu, em voz alta. Quem terá sido? O que fez? Quantos anos viveu? Como terá morrido? Será que chegou a ver esta fotografia? Se sim, será que alguma vez se lembrou dela? E as interrogações iam surgindo umas atrás das outras, como se tivesse necessidade de construir uma vida ficcionada onde pudesse colocar um protagonista, neste caso a criança, justificando-lhe uma existência momentânea. Ponho-me a pensar que, em adulto, terá visto, como é perfeitamente natural, fotografias dos pais antes de ter nascido. Num dia qualquer, em que os progenitores já não existiam, poderá ter folheado um álbum e vê-los sem a sua presença. Quem sabe se não lhe terá passado pela mente que estar morto é muito semelhante ao não ter nascido, a não fazer parte de uma fotografia qualquer, uma fotografia de quem se goste muito, se assim for, então, não deve ser muito mau.
Deve ser delicioso não estar numa fotografia que apreciemos imenso.

2 comentários:

  1. Como seria expectável, um maravilhoso olhar introspectivo, sobre a vida e os seus caminhos.
    Cada um de nós, e todos num conjunto, existimos com a mesma finalidade. No entanto, estou convencido, que poucos de nós conseguem descurtina-la com aproximada exactidão. A maioria não chega a compreender e mais evidente e neceesária evidência da nossa existência, a morte. Sem ela, não poderia haver renovação.
    No entanto, é-nos dado um período que "gastamos" e do qual pouca consciência possuímos; o período que vivemos.
    Para mim, que tenho o habito de raciocinar em separado, ou seja, tentando que umas coisas não influênciem outras, de modo a que as conclusões me pareçam o mais obvias possível, tenho como certo, que a finalidade da nossa existência, é a contemplação, complementada pela reflexão e pela observação. E que, os problemas sociais que avançam pelo Mundo, se devem precisamente à perca da capacidade de contemplar, de observar e reflectir que se tem agravado em função do aumento do apreço pelas tecnologias avançadas e pelo cúmulo dos valores materiais.
    Também tenho uma fotografia idêntica à sua, na parede da sala da casa da aldeia. Nela, encontram-se as imágens da minha avó,avô maternos e de um tio que não passou a idade infantil, creio que vitimado pela epidemia na altura conhecida pela pneumónica.
    Naquela fotografia, a pose é formal, a minha avó encontra-se sentada numa cadeira de costa alta, com o meu tio ao colo. Ela de vestido comprido e gola alta, com folhos, o menino de vestido branco, largo, meias brancas e sapato de verniz, preto. O meu avô, de pé, ao lado, com a mão direita apoiada na costa da cadeira, apresenta-se de fato completo, colete, a corrente do relógio, em arco do botão até ao bolsinho e... estranhamente, em cabelo. Digo estranhamente porque o conheci muito pequeno e durante poucos anos, mas sempre de chapéu.
    São interessantíssimas estas observações, não acha, caro Professor?!
    ;)

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  2. Se acho?
    Mais do que interessantes. São indispensáveis para ajudar a compreender certos fenómenos.

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