Não me recordo, apesar de fazer muitos esforços, quando é que comecei a pronunciar certas palavras, provavelmente por as dizer sem saber o que dizia. Balbuciamos, soletramos, interagimos através de palavras, fonemas e monossílabos sem saber o significado dos mesmos. Depois, com o tempo, acabamos por preencher o oco dessas palavras com algum sentido ou significado, um recheio grosseiro, e muito limitado, que, periodicamente, é substituído por conceitos mais elaborados e consistentes.
Não me lembro quando é que comecei a utilizar a palavra Deus, mas sou capaz de precisar alguns conceitos a esse propósito. Diziam-me que estava no céu. Olhava para o céu e não percebia como é que alguém podia estar lá em cima. Metia-me muita confusão, mas uma estampa, que estava na sala, ajudou-me a resolver o assunto. Uma imagem de um homem barbudo sentado sem usar banco, em cima das nuvens, dava a impressão de que estava para lá do teto azul. Foi então que entendi o que era o céu e onde estava Deus. O azul era a cor do teto e por cima, qual forro, estava a casa de Deus, onde morava, e assim percebi como é que ele via tudo; lá em cima podia ver com facilidade o que é que se passava cá em baixo. Desta forma consegui encontrar uma explicação. Depois, esta interpretação e muitas outras construídas ao redor do imaginário infantil - o que eram as "almas", onde ficava o purgatório e como muito facilmente se ia para o inferno, além de algum terror religioso que perturbava o meu sossego e transformava sonhos em pesadelos horríveis -, alimentadas e ensinadas "superiormente" por adultos, a quem devíamos respeito e obediência, começaram a cair umas atrás de outras sem fazer grande esforço. Bastava para o efeito pensar, não muito, apenas um pouco. No entanto, acabei por compreender, ou melhor, respeitar quem aceitava ou se deixava conduzir por essas normas e condutas. Não tenho nada que meter o "bico" na esfera da fé de quem quer que seja, embora não deixe de ter as minhas opiniões, mas devo ser tolerante e respeitador dos direitos dos outros. O que me mete mais confusão é quando tentam colocar a religião, seja ela qual for, em pé de igualdade com a ciência e procurar falar de igual para igual, sobretudo na explicação de determinados fenómenos. Um deles tem a ver com a criação da vida, mais propriamente do homem. Quando comecei a compreender a teoria da evolução acabei por conhecer muitas passagens relevantes de todo o historial e das mudanças operadas na forma de ver as nossas origens. Antes de saber o que era o darwinismo, aos seis anos de idade, já tinha tido uma violenta discussão com o padre na catequese a propósito da criação de Adão e Eva. E que discussão! Não aceitei minimamente a estupidez que me quis impingir e não levei com a cana da índia porque era um homem bom, mas não muito inteligente, se fosse o professor, que era o oposto, eu tinha ficado calado, mas apenas por causa da cana, obviamente.
Quando Thomas Huxley, o "buldogue" de Darwin, foi interpelado no famoso debate com o bispo Samuel Wilberforce, em que este lhe perguntou se descendia dos macacos por parte da mãe ou do pai, numa atitude provocatória, prenunciadora de uma mudança social e cultural sem precedentes suscetível de perturbar a ordem existente dominada pela religião, determinou a necessidade absoluta de separar as duas formas de ver e explicar o mundo. Mas parece que não, criacionismo e o desígnio inteligente intrometem-se constantemente na ciência, sempre com o objetivo de a religião não ser subalternizada ou perder a força. O recente debate entre o arcebispo Rowan Williams e o cientista ateu Richard Dawkins, realizado na Universidade de Oxford, fez recordar o outro.
Evidentemente que há perguntas que ficam sem resposta, mas, presumo, que não se deveriam misturar as duas conceções. Dizem alguns entendidos que Deus e a religião não são "para o bico da ciência", e dizem muito bem, mas também é preciso dizer, nesse caso, que a ciência também não é para o bico da religião. De qualquer modo, registo algo que considero muito positivo, os "atuais bispos" já admitem ser também descendentes dos "macacos". Sempre é uma evolução. Quem deve andar um pouco perturbado com isto tudo é a alma de Samuel Wilberforce.
Paciência, Wilberforce!
Foi no livro da 2ª. classe, se bem me lembro, que li uma interrogação para a qual até hoje continuo sem resposta:
ResponderEliminar"Mãezinha, de Deus existe
para nossa salvação
por que há tanta gente rica
e tanto pobre sem pão?"
A mãezinha deu a resposta mas, pecado meu?, só fixei a pergunta.
Caro Rui Fonseca, parece-me essa uma perspectiva bastante materialista de Deus, então se não houvesse ricos nem pobres já admitia que houvesse Deus? E se Deus tomasse conta de tudo, redistribuindo até ao cêntimo, onde estava a liberdade dos Homens, era tudo inelutável e predeterminado?
ResponderEliminarCaro massano Cardoso,o que nos mostram os dias de hoje é que o extrordinário desenvolvimento da ciência a nível global não reduziu, bem pelo contrário, as lutas religiosas e a importância da religião. Felizmente a ciência não deixou de evoluir, contrariando muitas das crenças, e muitas das crenças tiveram que se ajustar à evolução da Ciência. Mas duvido muito que isso tenha que ver com a Fé, tem talvez muito que ver com o Poder. Um abraço!
" parece-me essa uma perspectiva bastante materialista de Deus"
ResponderEliminarPelo amor de Deus!, Cara Suzana Toscano, longe de mim pensar resumir a transcendência religiosa a um qualquer primário raciocínio materialista.
Recordei apenas uns versos ingénuos, e confessei que não retive a resposta.
E que, ainda hoje, não tenho essa resposta. A Suzano Toscano tem?
Tenho tantas dúvidas para as quais não tenho respostas! Acho mesmo que tenho todas.
Não creio que seja pecador por ter dúvidas. Se for, serei um condenado.
Aquela é apenas um pequeno exemplo suscitado pelo intrigante texto do professor Massano Cardoso.
Ler este texto ao som do chor der alteren pilger é qualquer coisa. E o Wiberforce lá no Ewigkeit terá a paciência toda do mundo... qual pêndulo homónimo oscilante...
ResponderEliminar