quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Síndrome sem nome...

Em medicina é relativamente comum, na construção de novas entidades nosológicas, designá-las com o nome de quem as descobriu ou, então, relacioná-las com algumas descrições decorrentes de determinados fenómenos, locais onde foram identificadas pela primeira vez e até mesmo fazendo recurso à arte, à mitologia e à literatura. No fundo trata-se de síndromes, conjunto de sinais e de sintomas que conferem personalidade médica sem a qual não é possível tratar ou prevenir. Algumas dessas síndromes traduzem acontecimentos interessantes, previamente relatados, aos quais os descobridores foram buscar o nome. Neste momento surgem algumas na minha memória, caso do cocheiro "mister Pickwick", personagem de uma obra de Dickens, gordo, que adormecia em qualquer lugar e que traduz a relação entre a apneia do sono e a obesidade; outra, a síndrome de Stendhal, tão bem descrita na sua obra "Nápoles e Florença: uma viagem de Milão a Reggio" em que o vislumbre da imensa beleza florentina lhe provocou desorientação e perturbações fisiológicas. Os sofredores desta entidade são de tal modo sensíveis à beleza que chegam a não saber quem são, exigindo mesmo internamento; algo semelhante ocorre com os místicos religiosos que, na Terra Santa, se transfiguram em novos Messias (síndrome de Jerusalém). Outros chegam a automutilar-se e a fingir patologias sem fim, são os sofredores da síndrome de Münchhausen, o barão aventureiro aldrabão contador de façanhas mirabolantes. Os que não crescem psicologicamente, e se mantêm num estado de maturidade infantil, são categorizados como sofrendo da síndrome de Peter Pan, mais uma obra literária a dar nome a uma entidade. Poderia continuar no ritmo de enunciação das síndromes, como a de "Estocolmo", para justificar a dependência ao raptor, ao qual a vítima confere atributos não condicentes com o mal que lhe possa ter feito, uma forma de sobreviver que se arrasta para além do episódio.
Tudo isto foi despertado a propósito de um fenómeno designado por "cancro Cinderela". Mas o que é que a Cinderela tem a ver com o cancro? A história é por demais conhecida, o príncipe deseja encontrar a dona do sapato de vidro. Neste caso, "cancro Cinderela", estudos recentes revelam que só após três ou mais consultas é que são diagnosticados certos tipos de tumor. Por este motivo, atraso na deteção da doença, o tratamento pode ficar comprometido. Os autores recomendam que os médicos sejam mais interventivos, quais príncipes à procura de tumores! É natural que certos tipos, devido à localização e evolução não sejam diagnosticáveis logo à primeira, mas se formos na onda de procurar tudo e mais qualquer coisa, temo que possamos causar mais dano do que benefício. Este problema não é de fácil resolução. De qualquer modo, o bom senso e o cumprimento de determinadas regras podem ser uma grande ajuda.
Uma senhora ainda nova começou a queixar-se de problemas digestivos, mal-estar, ligeiras náuseas, uma ou outra tontura, enfim, um quadro muito comum e que a própria interpretou com sendo algo relacionado com o "fígado". Tudo bem, clínica e laboratorialmente. Medicação apropriada, com alguns efeitos positivos, mas depois sem seguimento. Então, anda melhor? Não. Não?! Bom, então temos que ver isso, de qualquer modo até ao fim do ano vai continuar com a terapêutica, depois, se não houver melhoras, temos que fazer mais alguns exames. Faltava pouco para o Natal. Em janeiro, pedi-lhe os tais exames, mais com o objetivo de comprovar que não havia nada de mal do que confirmar qualquer suspeita.
Entrou e perguntei-lhe pelo exame. Onde já vai isso. Como?! Assim que o fiz o médico mandou-me de imediato para o IPO. Amanhã vou ser hospitalizada para ser operada à cabeça. Só agora é que vim, porque o senhor doutor não esteve na semana passada. Fiquei de boca aberta, não porque fosse impossível ter um tumor, mas porque queria que não tivesse nada e poder dizer-lhe: Pronto! Afinal está tudo bem. Pode ficar descansada. Perante esta confissão - a senhora vinha-me mostrar outro exame, que estava bem -, vi-me de repente com um sapato de vidro, que se ajustava ao seu pé, mas que acabou por se partir nas minhas mãos, provocando-me dor e sofrimento. Dar uma boa notícia a um doente é a melhor coisa que pode acontecer a um médico, mas fazer achados destes, terríveis, é um sufoco. Não consigo habituar-me. Causa-me mal-estar e dor de alma. Não sei se há designação para esta síndrome, mas que existe, existe!

6 comentários:

  1. A partir do momento – há mais de dois anos – que comecei a ler as suas crónicas, comecei a suspeitar que o caro Prof. sofria dessa síndrome. Deve ser difícil seguir (se é que existe) medicina preventiva ou alternativa para esses casos. Bem haja!

    De todas essas síndromes mencionadas apenas conhecia a de Peter Pan. Conheço alguns casos desses ainda não confirmados mas que para lá caminham! : )
    Boa noite.

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  2. Esse síndrome do interesse-pelos-outros às vezes atenua-se com a experiência e fica só o profissionalismo impessoal e tecnocrático noutros casos, felizmente, torna-se crónico, incurável, como é o seu caso:)

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  3. Não conseguirmos habituar-nos à vida é sempre bom sinal. É a vida! (de alguns)

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  4. Caro Amigo e Professor,

    Porque não nomear essa desconhecida (até agora) síndrome de "síndrome de Massano Cardoso"?
    Creio que seria a designação mais apropriada, em homenagem ao ilustre Physician que o descobriu!

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  5. Caro amigo Tavares Moreira
    Não descobri nada, apenas sinto algo a que não consigo habituar-me.

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  6. Caro Professor,

    Mas não será sempre assim que as descobertas começam, nas ciências da vida?

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