- Está? É da casa do senhor Flores?
- Não, minha senhora, aqui não vive nenhum senhor Flores.
- Oh, desculpe, foi engano.
- Não há problema.
- Muito obrigada e um bom dia.
- Igualmente para a senhora.
Um engano qualquer um pode ter. Neste caso foi prontamente assumido, porque era evidente e inócuo.
Mas há enganos e enganos. Uns são simples, banais, fazem parte do dia-a-dia, mas mesmo assim podem complicar a vida. Mas há outros que são frutos de maus juízos, de preconceitos, de falta de visão, de uma teimosia intrínseca, revelando-se dolorosos e injustos para terceiros. Quando um erro desta natureza não é assumido, então, é uma situação grave, mas há, ainda, situações mais complexas quando é utilizado com propósitos bem definidos.
Há quem não admita os seus erros, porque são considerados como sinais de fraqueza, de insucesso ou de inferioridade. É mau, já que podem estar na origem de condutas fabricadas, artificiais, falsas, incómodas, daninhas, as quais são capazes de estragos subsequentes ao criar uma complexa teia ou rede de explicações estapafúrdias e perigosas. Há, no entanto, quem "confesse" os seus erros, uns, de forma teatral, e bem construída, para minimizar alguns impactos que lhes podem ser nefastos, ou mesmos fatais, em termos sociais ou políticos, embora, nos seus íntimos, saibam que é um mero disfarce, o que interessa é salvar as aparências, outros não, conseguem ser sinceros, vislumbrando-se o incómodo produzido, mas, habitualmente, não são perdoados.
Enganar é a estratégia mais frequentemente utilizada pelo homem para alcançar os seus objetivos.
Lembro-me de ouvir em pequeno que "meio mundo andava a enganar o outro". Ouvi e perguntei: - E tu, pertences a qual? - A minha avó cruzou os braços, baixou a cabeça e ficou a olhar para o fogo da lareira. Não respondeu! Eu sabia a resposta, mas fiquei incomodado por saber que alguém, ao dizer o que tinha acabado de dizer, soubesse que pertencia aos enganados e não resolvia o problema. Se ela com aquela idade andava a ser enganada, então o que é que iria acontecer-me? Com o tempo comecei a dar atenção, muita atenção a estes aspetos e, realmente, o engano está por todo o lado.
"Fui levado ao engano". Uma expressão muito comum; já a ouvi em muitas circunstâncias e também já a pronunciei. É o melhor adubo para fazer crescer e desenvolver técnicas e cursos nestas matérias, utilizando designações mais ou menos sonoras ou atraentes, originando uma subespécie de "enganadores" profissionais ao serviço de bancos, seguros, companhias de telecomunicações, das indústrias alimentares, da venda de inúmeros produtos miraculosos, até ao serviço de religiões, que prometem belos e encantadores futuros no além, a troco sabe-se lá de quê! Mas não fica por aqui, a política também é um bom campo para quem tenha queda para sobreviver enganando os outros. Dentro do grupo de pessoas que sabem que estão a ser enganadas, há muitos que não se importam, pelo contrário, até devem gostar, sim, porque há os que se sentem bem quando lhe trocam as voltas. Há gostos para tudo.
Um engano pode acontecer a qualquer um, mas enganar, propositadamente, para tirar proveito, constitui a forma mais clássica e certa de ganhar dinheiro, estatuto e poder. Não há volta a dar-lhe. De vez em quando há denúncias, reflexões a propósito, cria-se legislação apropriada, definem-se normas de conduta ética e publicitária com o objetivo de evitar tamanho descalabro. Sempre entretêm os incautos e enriquecem os profissionais.
Ao falar do "engano", e da minha tentativa em evitar ser enganado, sem passar para o outro grupo, concluo que também já enganei. Não vou confessar os meus enganos, partilhados por outros, só espero que não tenha prejudicado muitas pessoas. Muitos doentes querem que os engane, e eu engano-os, indo de encontro ao seu desejo, embora fique algumas vezes na dúvida. Mas os familiares ficam a conhecer a verdadeira situação, talvez daí a expressão que utilizam, quando falam de alguém querido muito doente, "foi desenganado pelos médicos".
De engano em engano vamos sobrevivendo, até que um dia, a morte, a depuradora de todos os enganos, faz a sua entrada. A única que é imune ao engano, e mesmo que consigamos adiá-la, "enganando-a" com todos os meios ao nosso alcance, ela ri-se, porque tem uma paciência única, sabe qual é o resultado final.
Deixo-te uma pequena parábola, peço que perdoes a intromissão,
ResponderEliminarerecta nos seus noventa anos a avó Joana sai da aldeia a cada quinze dias para ir à cidade, ainda longe, luzes ao longe que a visitam como um farol, a metrópole, o autocarro leva-a às nova da manha em ponto, arrebita pé em asfaltos novos, e prédios de grande engenho, em vidros enormes que cobrem fachadas e varandas, entra no banco para levantar o dinheiro da reforma,
- bom dia, queria levantar duzentos euros se faz favor,
- com certeza - pessoas passeiam em correria pelo vasto espaço, limpo, polido para dar aspecto de novo, pessoas risonhas, carrancudas, uma panóplia insondável - senhora Joana já vi que tem aqui mil euros que não está a usar, que acha de fazer um investimento numas obrigações de risco com uma boa retribuição em seis meses?,
mas que é isso matuta a senhora Joana, a pensar no mercado e nas flores que tinha que levar para a campa do marido, bem, mas se este esbelto senhor, neste fato feito por medida, com gravata, barba feita, dentes lavados, sem sinais de doenças, que trabalha nesta instituição de renome me sugere com certeza é o melhor,
- sim menino faça lá isso, que eu ainda tenho que ir ao talho, ao mercado e ir para a paragem a tempo do autocarro das 11.
seis meses passam, a senhora Joana dava às galinhas quando ouve o correio a passar na motorizada a dois tempos, abre a carta do banco, fica tonta, pensa e repensa mas não entende, dos mil euros nem vê-los,
- arre diabos.
(cumprimentos)
James Dillon
ResponderEliminarApreciei imenso o texto.
Belo.
Obrigado.
Leio o seu texto depois de ter colocado um apontamento no meu bloco de nmotas acerca da mortalidade juvenil em Portugal.
ResponderEliminarSei que só muito marginalmente a sua nota tem a ver com a minha perdigota. De qualquer modo a falta de informação é em certo sentido uma forma de engano na medida em que pode conduzir a comportamentos errados.
Presumo que lhe interessa: Pode ver aí ao lado clicando em "mortalidade juvenil" no espaço onde o Quarta República tem a amabilidade de me acolher.
Rui Fonseca
ResponderEliminarEsse fenómeno, mortalidade juvenil, é uma realidade desde sempre, e apesar de ter sofrido uma diminuição nos últimos tempos continua a ser um preocupante problema de saúde pública. Não foi por acaso que os transplantes em Portugal atingiram os níveis de excelência, sendo, a certa altura, o nosso país considerado como um verdadeiro campeão de transplantes. Uma das explicações está, naturalmente, nos jovens que morriam, e continuam a morrer vítimas de acidentes de viação. O álcool é um promotor e indutor de dadores. Concordo consigo e advogo proibições e restrições ao consumo do álcool, sobretudo nos mais jovens. Advogo que sejam tomadas medidas quanto ao acesso e ao consumo exagerado de álcool. É obsceno que as autoridades sejam complacentes com a toda poderosa indústria do álcool, capaz, como se viu há alguns anos, de obrigar o governo a retroceder em leis justas e adequadas. E ainda falam do Salazar quando este citava que o vinho.... E hoje? Quem controla e disciplina as super bebedeiras coletivas? Quem tem interesse no seu fomento? E as preocupantes histórias e financiamentos dos industriais do ramo a atividades dos jovens? E o abuso sobre as propriedades terapêuticas de algumas bebidas alcoólicas? Enfim, muito haveria a dizer sobre este assunto, mas concordo consigo de que há muitos "enganos" a este propósito. E para terminar, também devo fazer uma declaração de interesses, sou um
apreciador de bom vinho e de algumas bebidas espirituosas, bom, relativamente a estas últimas desde que não sejam doces...
Caro Prof,
ResponderEliminarHoje ia enganando alguém se a pessoa em questão não estivesse presente para desfazer o engano. E fiquei a cogitar: como foi que me enganei desta forma?
Uma colega pediu a transferência. Foi entrevistada por X e foi aceite. Deu-me as boas novas. Gostou do entrevistador e do novo local de trabalho. Quando transmiti a “novidade” a outra colega, não só indiquei o nome errado do entrevistador como o nome errado do edifício. Todos trabalham para a mesma instituição. Conheço-os pessoalmente.
Muitos enganos num engano só! : )
Isto é caso para um “case study”! : )
Haverá enganos de simpatia? : )
Abraço
Catarina
ResponderEliminarA simpatia leva-nos, por vezes, a essa situação. Nada de anormal. "Um engano qualquer um pode ter".
Podemos também partir do princípio que, de tudo o que nos rodeia e faz parte da nossa existência, nada é verdadeiro.
ResponderEliminarO nosso conhecimento, é incerto.
Por exemplo: se assistirmos a um acidente rodoviário e formos citados para o testemunhar; passado algum tempo, quando formos inquiridos, já não temos a certeza se o fulano que levou a passa, tinha colocado o pisca-pisca que deveria assinalar a mudança de direcção.
Direcção... não passamos a nossa existência, a mudar de direcção?!
Julgamos que a forma anterior como a vida decorria, se estava a tornar monótona, repetitiva e vai de a mudar.
Mas depois de a mudarmos, percebemos que afinal... acabámos por ficar na mesma, porque tudo em nosso redor, é igual ao que já era e então, desesperados, ensaiamos nova mudança de vida, sem no entanto sairmos do mesmo circulo. O circulo da vida, o círculo em que a vida teve origem, o círculo em que a vida se desenvolve, sempre em círculo, sempre partindo de um ponto e chegando inevitávelmente ao mesmo ponto.
Não ha nada que enganar... é sempre em círculo... talvez para que ninguém se perca...
;)
"Não há nada que enganar" vá sempre em frente...
ResponderEliminarNo sítio onde moro, as pessoas têm um "dito" característico que usam na circunstância de quando alguém está a complicar uma explicação simples e o outro já está a ficar sem paciência para o ouvir; dizem: «Óh pá, é sempre a direito, como quem vai para Torres!».
ResponderEliminar;))