Já o Verão ia a meio quando o marido e o filho decidiram ir buscá-la sem se anunciarem. Chegaram num dia de calor, cansados da viagem e do pó do caminho, atravessaram a pé o terreiro florido e cruzaram-se com os caseiros que, surpresos, os cumprimentaram com cerimónia e logo se recolheram a casa, levando com eles o cãozito, receosos do que pudesse acontecer.
O carro ficou ali parado, junto ao portão, até ao anoitecer, na casa viam-se as silhuetas agitadas a passar para lá dos vidros das janelas até que a porta se abriu, deixando sair com clareza o som das vozes alteradas, numa discussão breve de despedida, o marido e o filho entraram no carro, o motor arrancou com fúria e a poeira do chão perdeu-se na penumbra da noite. Ela ficou à porta, a vê-los desaparecer na curva da estrada, depois entrou em casa e deixou-se cair no sofá, junto à lareira, com a cabeça entre as mãos, soltando convulsivamente as lágrimas que lhe afogavam a garganta. O cãozito não estava ali para a alertar, por isso ela não viu a sombra deixar a mesa do candeeiro, crescer, crescer imenso até cobrir a parede toda à sua frente, hesitar um pouco e depois, como se obedecesse a um impulso irresistível, deslizar bruscamente até ao chão, deitando-se sobre os seus pés num afago impotente, vacilando fragilmente quando os soluços a sacudiam, como se sofresse com ela.
Acordou no dia seguinte decidida a ficar, abriu a porta trancada do corredor e entrou nas salas bafientas onde vivera o sogro, a avaliar as obras necessárias para recuperar aquele espaço, não fosse o filho mudar de ideias e um dia querer também passar uns tempos na casa. Foi a partir daí que o cão deixou de rosnar baixinho ao fim do serão, ficando muito tranquilo aos seus pés, mas ela procurava em vão a sombra na parede, sem compreender a vaga desilusão que sentia ao encontrar apenas o reflexo luminoso da luz firme do candeeiro na parede branca. (continua)
Esta mulher é de facto uma heroína!
ResponderEliminarE não tenho a menor dúvida que no final... naquele momento de virágem em que tudo irá recomeçar de novo, tanto o marido, como o filho, irão adorar a nova esposa e mãe que vão ganhar.
E ainda vão ter direito a um cachorro que não teme fantasmas.
Mas, peço desculpa porque estou já para aqui a inventar finais e a antecipar cenários que não me competem.
Assim, recolho-me à condição de leitor humilde e expectante, sem deixar de notar que as grandes batalhas, so se ganham com coragem e firmeza, não abdicando daquilo que são os nossos ideais e as nossas convicções. E se algum fantasma quiser e puder dar uma ajudinha... melhor. Afinal, não é só ser fantasma, sem outra utilidade...
;))
Claro, um fantasma também tem as suas responsabilidades :)
ResponderEliminarA alma penada trasvertida de sombra aninha-se aos pés da heroína...não tarda, subir-lhe-á ao colo, ao pescoço, enredando-a em suave amplexo.O mistério adensa-se!...Quem ganhará, a heroína ou o fantasma? Por mim, vou mais pelas forças sobrenaturais!...
ResponderEliminarEsta sombra não é dada a atrevimentos, caro Pinho Cardão, há que manter as devidas distâncias ou saltou aquela linhas em que a sombra era atribuida à alma do sogro? ai, ai, até parece um jornalista se investigação sequioso de escândalos :)
ResponderEliminarTemos de refrear a imaginação, caro Dr. Pinho Cardão, e esperar pelo desfecho da novela.
ResponderEliminarAté pode ser que termine em romance... quem sabe, o marido furioso pela recusa da mulher em o acompanhar, não tenha a sagez de retroceder no caminho e entretanto irrompa pela alameda da quinta um cavaleiro trajando de branco, estanque o corcel em frente à janela do salão atraindo a curiosidade da dama, levando-a a descer a escadaria e já no exterior, seja pegada pela cintura e... nos braços do garboso cavaleiro parta à conquista de novas emoções e amores menos tépidos...
Nunca se sabe, nestas quintas assombradas, de tudo pode acontecer...
;))
...e diz o caro Bartolomeu para o Pinho Cardão refrear a imaginação ! :)
ResponderEliminarSuzana
ResponderEliminarDepois deste episódio muito triste, fiquei com dúvidas sobre como vai acabar a Casa da Sombra. Acabar mal não vai, basta olhar para a coragem desta mulher a trilhar um caminho que dê sentido à sua vida. Acabaria melhor se o marido e o filho quisessem partilhar esse caminho. Pode ser! Mas as pedras fazem parte dos caminhos. A força da Sombra e a afeição do cãozinho vão dar uma ajuda...
Estou a adorar o enredo deste conto em posts. Por acaso a Dra Susana já pensou dedicar-se à escrita e fazer uma parceria com o Prof Massano? Complementar-se-iam lindamente! Ambos têm uma sensibilidade apuarada para as questões humanas e sociais. Os leitores de 4R iriam adorar e emocionar-se...
ResponderEliminarCara Suzana:
ResponderEliminarLimito-me a ler e a procurar interpretar. Os maiores atrevimentos, diz-se que têm lugar na sombra. E aquela casa sombria, assombrada mesmo, era bem um lugar bem propício para os atrevimentos daquela sombra. O texto é explícito. Está lá dito, preto no branco, que ela crescia, crescia,hesitou um pouco, o que é natural, e depois, como se obedecesse a um impulso irresistível, o que também é natural, deitou-se aos seus (dela, a dona da casa) pés num afago impotente, o que já não é lá muito natural, mas acontece...A partir daqui só fiz uma inocente extrapolação lógica. ..
Pinho Cardão, anda a ler muitos jornais com investigações sobre espionagem e sombras na investigação que devem ser interpretadas com inocentes extrapolações, é o que é!O 4r aqui está pronto para o devolver a leituras sãs...
ResponderEliminarHuum, Margarida, esse epílogo daria para um livro, já viu o processo mental, cheio de avanços e retrocessos (o Pinho Cardão quenão interprete isto, faz favor!) para levar dois homens casmurros a verem o que é preciso? E, mesmo assim, não sei qual seria o fim certo :)
ResponderEliminarCara MM, ainda bem que está divertida, a sua comparação com o Massano Cardoso deixa-me encantada, os textos que aqui nos tem presenteado são sempre uma inspiração. Continue aqui, vai ver que temos muito gosto em continuar a surpreendê-la!
Cara Suzana:
ResponderEliminarBom, calo-me, proibido que estou pela Suzana de interpretar, em estilo de realismo literário, esse processo de avanços e retrocessos. Caso contrário...
POis, pois, as almas incertas e o realismo nunca deram bons epilogos, caro Pinho Cardão, assistimos a isso todos os dias :)deixe lá as almas incertas pontuarem por uma vez.
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